[Sermão] A visita dos Reis Magos ao Menino Deus

Sermão para a a Festa da Epifania
06 de janeiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…

“Encontraram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se, o adoraram, e abrindo seus tesouros, lhe ofereceram presentes.”

A Festa da Epifania ou do dia de Reis está entre as mais importantes do ano litúrgico, caros católicos, ao lado do Natal e da Páscoa, sobretudo porque ela contém em germe a vocação dos gentios e porque era a Festa da Realeza de Cristo – antes da criação da Festa de Cristo Rei – dado que os Reis Magos foram adorar o Rei dos Judeus. A visita dos Reis Magos ao Menino Deus é de uma riqueza espiritual incomparável.

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Fra Angelico

Antes de tudo, vale destacar que é São Mateus que conta a adoração dos Magos. Ora, a finalidade de São Mateus ao escrever seu Evangelho é converter os judeus, mostrando que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Messias prometido. Para atingir o seu objetivo, São Mateus mostra que Cristo cumpriu todas as profecias a respeito do Messias. Na adoração dos magos, várias são as profecias que se cumprem.

Primeiramente, se cumpre a profecia feita por Balaão de que uma estrela sairia de Jacó e que um cetro se levantaria em Israel (Num XXIV, 17). Essa profecia de Balaão era bem conhecida entre os pagãos, pois Balaão era um pagão. A estrela profetizada por Balaão é a estrela que guia os Magos, o cetro que se levanta em Israel é o novo Rei que nasce.

Em seguida, se cumpre a profecia de que o Messias deveria vir quando o povo judeu fosse governado por um estrangeiro (Gen. IV, 9). Sendo o rei Herodes um estrangeiro da região da Iduméia, o tempo para a vinda do Messias havia chegado.

A próxima profecia que se cumpre é a de Miquéias, que indica o nascimento do Messias em Belém. Eis a profecia, que acabamos de cantar no Evangelho: “Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre as cidades de Judá, é de ti que sairá aquele que é chamado a governar Israel”.

Como nos mostra o Evangelho de hoje, os escribas e os príncipes dos fariseus conheciam perfeitamente essa profecia e, podemos supor, com acerto, que conheciam também as outras. Finalmente, na adoração dos magos, cumpre-se também a profecia de que os Reis da Arábia e de Sabá trariam presentes ao Messias: ouro, incenso… como vemos no texto de Isaías (Sal. 51, 10 e Isa. 60, 6). Para os Judeus, naquela época a Arábia não se reduzia ao que é hoje, mas se estendia também ao oriente da Judéia. Com tantas profecias cumpridas, não há lugar para a menor dúvida: é o Messias que acaba de nascer, o novo Rei dos Judeus.

Os Magos, ao verem aquela estrela surgir, sabiam, pela profecia e por revelação divina, que se tratava do nascimento do novo Rei dos Judeus. Mago, no oriente antigo, significa a mesma coisa que sábio na Roma Antiga, filósofo na Grécia, ou escriba em Israel. Portanto, os Magos não eram astrólogos, nem adivinhadores, nem feiticeiros. A graça de serem os primeiros gentios a adorarem Cristo não poderia ser dada a adoradores do demônio, como o são os astrólogos, os adivinhadores, os feiticeiros. Era comum naquela época, que os sábios fossem também governantes, ao menos de uma parcela do povo. Por isso, são chamados de Reis Magos. Os magos eram, então, sábios, que praticavam a lei natural e cultivavam as ciências, em particular a astronomia. Sabiam, então, auxiliados pela graça, que a estrela que surgiu era a estrela do Messias, como eles mesmos dizem: “vimos sua estrela no Oriente”. Os Reis Magos sabiam que não se tratava de um fenômeno natural, mas de uma estrela milagrosa, a estrela anunciada pela profecia.

Seguindo a estrela, os Reis Magos chegam a Jerusalém, a fim de perguntar ao rei Herodes onde está o Rei dos Judeus que nasceu. A estrela desaparece nesse momento. Aqui os reis Magos dão uma lição de fortaleza e coragem que devemos seguir. Vejamos.

Os reis magos conheciam Herodes e sua crueldade para com quem ameaçasse o seu trono. Herodes já havia matado inclusive filhos, a fim de assegurar o trono. Ao perguntar a Herodes onde está o rei dos Judeus, eles não temem colocar em perigo a própria vida, a fim de servir a Deus. Os Reis Magos ainda nem viram a criança e já estão dispostos a dar a vida por ela. Ainda nem conhecem Nosso Senhor, mas não temem nada para servi-lo. É evidente que, ao perguntarem a Herodes onde está o Rei dos Judeus que nasceu, correm risco de vida, pois Herodes não admitiria outro rei. É essa coragem dos Reis Magos que devemos ter: servir o Rei dos Reis sem recear os reis desse mundo. Herodes e toda a cidade de Jerusalém temeram. O primeiro temeu, achando que o Rei da Glória eterna lhe tiraria o trono terrestre. Jerusalém temeu pela eventual reação cruel do rei, mas também porque muitos dos judeus não estavam preparados para receber o Messias, como ficará evidente no momento da paixão e morte de Cristo. Todos sabiam, pelas profecias, que o nascimento do Messias ocorreria naqueles tempos. Os escribas sabem exatamente onde ele vai nascer. A própria presença dos Magos é mais uma prova de que o Messias já nasceu. Não há desculpa de ignorância. Os judeus e, em particular, os escribas e os príncipes dos sacerdotes, sabem que o Messias nasceu, mas não querem ir adorá-lo. Quantos católicos procedem da mesma forma? Conhecem a doutrina católica, conhecem sua moral, mas não praticam a religião por medo, medo de abandonar seus pecados e gostos, medo de entregar-se inteiramente a Deus, medo de entregar tudo a Deus, como o fizeram os Reis Magos.

Os Reis Magos prosseguem, então, até Belém, tendo a estrela novamente por guia. Ao vê-la, novamente, se alegram de uma alegria enorme. A tristeza dos Magos pela indiferença dos judeus é compensada pelo auxílio divino significado na estrela. E, finalmente, eles encontram o Menino Rei e sua Mãe, Maria, provavelmente, ainda no estábulo, a palavra casa podendo designar o estábulo. Eles encontram Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora. Onde está um, lá está também o outro. São José não estava presente, a fim de deixar claro que a criança não tem pai humano. Os reis magos encontram um bebê, enrolado em panos, incapaz de falar, em local muito pobre, sem bens. E o que fazem? Prostram-se, adoram e abrem seus tesouros. Quer dizer, entregam tudo ao Menino Jesus porque sabem que Ele é Deus. Eles se prostram. Prostrar-se é um gesto do nosso corpo e ao fazê-lo, eles entregam todo o corpo, saúde, sofrimentos físicos ao Menino Jesus. Eles o adoram. Adorar é um ato da alma. Ao adorar, eles entregam toda a alma ao Menino Jesus, entregam a inteligência e a vontade, as tristezas e as alegrias. Finalmente, eles abrem seus tesouros, entregando ao Menino Jesus todos os bens materiais que possuem. E esses presentes são uma verdadeira confissão de fé. Pelo ouro, eles confessam a realeza de Cristo. O ouro, sendo o mais nobre dos metais deve ser dado como presente às pessoas mais nobres, aos reis. Pelo incenso, eles confessam a divindade de Cristo. O incenso só podia ser oferecido à divindade. Por isso, tantos Cristãos foram martirizados por não quererem queimar um grão de incenso aos ídolos. Mas Cristo é Deus, e deve receber o incenso. Pela mirra, eles confessam a humanidade de Cristo e sua futura paixão e morte. A mirra era usada para perfumar os corpos dos mortos. Eis uma confissão de fé esplêndida que os chefes dos judeus não quiseram fazer: Cristo é Homem, Deus e Rei. Além disso, os reis Magos, sendo três, com os nomes de Gaspar, Melchior e Baltasar, segundo a tradição mais segura, já indicam a Trindade de Pessoas em Deus.

Cristo chama, então, para a sua Igreja os judeus e os pagãos. Havíamos visto, no Natal, que o anjo anuncia o nascimento de Cristo a alguns pastores judeus. Hoje, na Epifania, os primeiros gentios são chamados a se converter a Cristo. Devemos seguir o exemplo dos reis Magos, nossos pais na fé. Devemos confessar que Cristo é Homem e Deus e que Ele é Rei de nossas almas e das nações. Devemos, como os reis Magos, entregar tudo o que temos a Cristo: nosso corpo, nossa alma, nossos bens. Devemos também entregar a Cristo o ouro das boas obras, o incenso da oração e a mirra da mortificação e da penitência. Devemos como os reis Magos estar dispostos a dar nossa vida por Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles ainda nem o conheciam e estavam prontos para morrer pelo Menino Jesus. Nós o conhecemos e sabemos tudo o que ele fez, e tudo o que fez por nós. Peçamos a Maria Santíssima, que está sempre com Cristo, a coragem de servir o Rei dos Reis, sem temer os reis desse mundo, sem temer os sofrimentos. É Maria que nos conduz a Cristo. É Maria a estrela que nos conduz a Cristo. É ela a estrela da manhã e a estrela do mar.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A circuncisão de Nosso Senhor

Sermão para a Oitava de Natal / Circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo
1º de janeiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“Depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o Menino, foi-lhe dado o nome de Jesus.”

Hoje é o dia da Oitava do Natal e da circuncisão do Menino Jesus, no rito tradicional. A aliança divina feita com Abraão mandava que seus descendentes homens fossem circuncidados. A lei de Moisés ordenava que ela fosse feita no oitavo dia. Como vimos no domingo passado, Nosso Senhor Jesus Cristo se submeteu inteiramente à lei mosaica para o nosso bem. Dessa forma, no oitavo dia de seu nascimento, o Menino Deus foi circuncidado e recebeu o nome de Jesus. A festa do Santíssimo nome de Jesus será celebrada amanhã.

Hoje, cumpre entender o que era a circuncisão e qual é a circuncisão da nova e eterna aliança instituída por Deus Nosso Senhor.

Fra Angelico, 1451/1452

Fra Angelico, 1451/1452

A circuncisão foi dada por Deus a Abraão como sinal de fé na promessa que havia sido feita ao Santo Patriarca, promessa que de sua descendência viria o Messias, o Salvador. Era, portanto, um ato de fé na promessa divina, além de ser um símbolo da consagração a Deus e do reconhecimento de sua soberania, e também um sinal de reconhecimento do pecado e da satisfação que é devida pelo pecado. A circuncisão, significando a fé na promessa divina, significando a consagração a Deus e o reconhecimento do pecado, era a ocasião para que Deus purificasse a alma das crianças judaicas de sexo masculino do pecado original. Como sabemos, todos os que vêm ao mundo – com exceção de Nosso Senhor e Nossa Senhora, claro – possuem o pecado original, que nada mais é que a ausência da graça, o afastamento de Deus.  Uma criança até os seus sete anos não pode livrar-se do pecado original a não ser por um rito instituído por Deus, pois é incapaz de um ato voluntário pelo qual poderia arrepender-se de seus pecados e unir-se a Deus. Uma criança não pode salvar-se por um batismo de desejo. Assim, é necessário um rito que manifesta a fé no Messias e pelo qual Deus purifica a alma da criança para que essa possa se salvar, caso venha a morrer antes da idade da razão, antes dos sete anos. Antes da circuncisão, na época da lei natural, havia um rito instituído por Deus para apagar o pecado original e que não sabemos mais em que consistia. Com a promessa feita a Abraão, esse rito de purificação do pecado original passou a ser a circuncisão para as crianças judias de sexo masculino. Para as crianças judias de sexo feminino e para as crianças pagãs, persistia o rito instituído na época da lei natural, anterior a Abraão. A prática da circuncisão era, portanto, o único modo de salvar os meninos judeus, caso viessem a morrer antes da idade da razão. E, por isso, Deus ordenou que fossem circuncidados no oitavo dia e não mais tarde.

Nós vemos, então, claramente, que a circuncisão era uma prefiguração do batismo. O Batismo é, evidentemente, muito mais perfeito que a circuncisão, sendo um rito muito mais espiritual e profundo. O Batismo, ao contrário da circuncisão, não é só uma ocasião na qual Deus confere a graça. O Batismo é causa da graça, pois nele Deus usa a água e as palavras para transmitir a graça.  Após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, o único meio pelo qual uma criança sem o uso da razão pode se salvar é pelo batismo (excetuando o martírio, como foi o caso dos santos inocentes). Não há outro meio. Por isso Nosso Senhor disse aos seus apóstolos “ide e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.” Daí a importância de batizar as crianças rapidamente, a fim de lhes assegurar o céu, em caso de morte prematura. Uma criança que não tem o uso da razão e que falecesse iria para o limbo, onde elas estão isentas de sofrimento e gozam de uma felicidade natural, que é incomparavelmente inferior à felicidade no céu, que é uma felicidade sobrenatural. É, assim, de suma importância batizar as crianças o quanto antes. Os moralistas dizem que adiar o batizado por mais de um mês é falta grave dos pais, colocando em risco a salvação da criança. Portanto, caros pais, não batizar a criança dentro de um mês após seu nascimento é pecado mortal. E que não se diga que a saúde da criança durante esse período é frágil. Ora, Deus mandou que fosse feita a circuncisão, que é muito mais perigosa para a saúde do bebê, no oitavo dia, em um tempo em que a medicina era precária, e nós adiaríamos o batismo por mais de um mês por motivos de saúde? Chegando próximo o momento do nascimento, os pais devem já tomar todas as providências para que o batismo seja feito, no máximo, dentro de um mês, cumprindo os trâmites necessários, realizando os cursos necessários, etc., escolhendo os padrinhos por suas qualidades espirituais e não por mero parentesco ou motivo social. Os padrinhos serão necessários não para dar presentes, mas para auxiliar os pais e talvez para supri-los na educação religiosa da criança.

A necessidade do batismo é tanta que Nosso Senhor Jesus Cristo quis que a matéria do batismo fosse a água, que é muito fácil de ser encontrada em praticamente qualquer lugar, diferentemente do pão e do vinho – necessários para a eucaristia – ou do óleo – necessário para a crisma e extrema-unção. O Batismo é tão necessário que, em caso de urgência, qualquer um pode batizar. É preciso que todo católico saiba como se faz o batismo, a fim de realizá-lo em caso de urgência: basta derramar água na testa da pessoa dizendo “Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.” Se a cabeça não estiver acessível, por uma razão ou outra, a água pode ser derramada em outro membro do corpo, dizendo as palavras acima mencionadas.

Pe. Edgardo Mortara com a mãe judia; ele fora educado pelo Papa Pio IX por ter sido batizado

Pe. Edgardo Mortara com a mãe judia; ele foi educado pelo Papa Pio IX após ter sido batizado criança e sobrevivido ao perigo de morte.

O Batismo é tão necessário que em perigo de morte de uma criança, ela deve ser batizada ainda que seus pais não sejam cristãos. Houve um caso famoso na época de Pio IX em que uma babá batizou um menino judeu em perigo de morte. O menino sobreviveu e Pio IX passou a cuidar de sua educação cristã, para a revolta dos liberais da época. Ao menino foi dada a liberdade de voltar a viver com os pais durante a adolescência. Dada a incompatibilidade com a fé, ele deixou os pais e tornou-se sacerdote, adotando o nome de Pio na vida religiosa.

O Batismo não é um mero rito de introdução na sociedade ou na Igreja, não se trata de mero evento social de apresentação da criança. O Batismo é um sacramento instituído por Cristo, para que a pessoa receba a sua graça, para que tenha o pecado original apagado. Pelo Batismo, se imprime na alma uma marca que nunca mais poderá ser apagada, o caráter batismal, que nos incorpora a Cristo e que nos torna aptos a receber os outros sacramentos e aptos a participar da liturgia, em particular da Santa Missa. Eis a importância capital do batismo, sem o qual as criancinhas não podem se salvar. Resta claro que a circuncisão enquanto rito religioso está abolida e praticá-la com sentido religioso seria negar a vinda de Cristo e a instituição do Batismo, que é falta grave contra a fé.

No dia de sua circuncisão Nosso Senhor nos ensina, então, a importância de receber logo o batismo. É também nesse dia que Cristo, ainda criança, oferece as primeiras gotas de sangue para a nossa redenção, manifestando, mais uma vez, sua caridade ardente para conosco. Cristo mostra também a sua humildade. Ele não precisava ser circuncidado, pois não tinha qualquer pecado e já estava inteiramente consagrado a Deus. Se o fez foi porque tomou sobre si todos os nossos pecados e sofreu por eles, a fim de nos obter a misericórdia divina. Além dos motivos gerais que mencionamos no domingo passado para observar a lei (mostrar que a lei de Moisés era boa, impedir as calúnias dos judeus, nos livrar do jugo pesado da lei mosaica, consumá-la e dar exemplo de obediência), Cristo quis hoje mostrar que ele possuía um corpo verdadeiramente humano, capaz de sofrer até o sangue e quis mostrar, cumprindo as profecias, que descendia de Abraão, se submetendo ao rito imposto por Deus ao patriarca e seus descendentes. Submetendo-se à circuncisão, Cristo nos lembra de que devemos todos ser espiritualmente circuncisos. Já no Antigo Testamento estava dito. “O senhor circuncide o teu coração, para que ames a Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, a fim de que possas viver” (Deut. XXX). Assim como não bastava aos judeus serem circuncidados na carne, devendo ser também na alma, devemos ser batizados e cumprir as promessas feitas em nosso batismo. Promessas de servir a Deus e de renunciar ao demônio e suas pompas, que são os pecados.

Santo Ano de 2013 a todos. É muito comum ouvirmos nesses dias de começo de ano o desejo de muita saúde e paz. É o que desejo a todos. Desejo saúde, antes de tudo a da alma, e também a do corpo, se for conveniente para a alma. E desejo a paz, mas a paz de Cristo, que não é como a do mundo. A paz de Cristo é feita de combate para defender as nossas almas, a fé e a Igreja dos ataques dos inimigos. Santo Ano de 2013.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito santo. Amém.

[Sermão] A apresentação ao Templo e a lei mosaica

Sermão para o Domigo da Oitava de Natal
30 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Nós estamos, caros católicos, na oitava do Natal. Isso significa que a alegria e as graças próprias do Natal se prolongam durante oito dias, ou uma semana, do dia 25 ao dia 1º de janeiro. As oitavas na Igreja Católica encontram sua origem no Antigo Testamento: a festa dos tabernáculos durava oito dias, havendo no oitavo uma grande solenidade; a festa de consagração do templo, na época de Salomão, também foi feita no oitavo dia. No Rito Tradicional, ainda restam três oitavas, a oitava de Natal – na qual estamos -, a oitava de Páscoa e a de Pentecostes. As três principais festas litúrgicas se prolongam, assim, durante oito dias, a fim de que durante os oito dias a Igreja possa comunicar de modo mais pleno as graças e os ensinamentos relativos a esses mistérios, que não podem ser esgotados em um único dia.

O Evangelho de hoje nos narra a apresentação de Nosso Senhor ao Templo. Segundo a lei mosaica, os primogênitos dos homens e dos animais deveriam ser consagrados ao Senhor. Os primogênitos dos homens deveriam ser resgatados em troca de um cordeiro ou, se a família fosse pobre, por um par de rolas ou dois pombinhos. A Santa Família, claro, fez a oferenda dos pobres, embora tivessem recebido pouco antes os presentes caros dos Reis Magos. Podemos supor que, movidos pela caridade, já haviam dado o valor de tais presentes aos que eram mais pobres que eles. Tal exigência da parte de Deus – de consagrar os primogênitos – decorria da liberação do povo Judeu da escravidão do Egito. Nessa ocasião, dado que o Faraó, com o coração endurecido, não deixava os judeus partirem, Deus fez que a morte atingisse todos os primogênitos do Egito, homens e animais, poupando os primogênitos dos judeus. Poupou-os, mas pediu que lhe fossem consagrados e resgatados por animais. Dessa forma, ao consagrarem os primogênitos, os judeus reconheciam que Deus é o soberano Senhor de todas as coisas, mesmo da vida dos homens. Cristo, sendo o primogênito de Nossa Senhora, deveria ser consagrado a Deus. Bom, vale notar que dizer que Cristo foi o primogênito não significa que ela teve outros filhos. Nunca é demais lembrar: Cristo não tinha irmãos em sentido estrito. Na Sagrada escritura, também os primos e parentes próximos são chamados de irmãos. Primogênito é um termo jurídico da lei mosaica, empregado mesmo quando é o único filho. Nosso Senhor, no Evangelho de hoje, é apresentado ao templo, segundo a lei de Moisés.

Nosso Senhor se submete, então, à lei mosaica. Ora, Jesus Cristo, sendo homem e Deus desde o primeiro instante de sua concepção, já estava plenamente consagrado a Deus pela união com a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade desde o momento da encarnação. Ele não precisava ser consagrado a Deus por meio da lei mosaica. Todavia, Cristo quis praticar e observar esse e todos os outros pontos da lei mosaica. Ele quis fazê-lo não porque estivesse submetido à essa lei – pois era Deus -, mas por quatro motivos.

Primeiro, para mostrar que a lei mosaica era boa. A lei mosaica levava à salvação, se fosse praticada em virtude da fé no Messias vindouro e por amor a Deus. A lei mosaica era imperfeita, mas boa.

Segundo, Ele quis praticar a lei mosaica para consumá-la, mostrando que a lei estava ordenada a Ele, mostrando que a lei era uma preparação para a sua vinda, e para mostrar que ela deveria cessar com a sua vinda. Claro, a parte da lei que deve cessar diz respeito às práticas rituais e cerimoniais, dado que os dez mandamentos permanecem plenamente válidos mesmo depois da vinda de Cristo.

Em terceiro lugar, Nosso Senhor Jesus Cristo quis observar a lei para que os judeus não tivessem uma desculpa para caluniá-lo, acusando-o de pecado por não praticar a lei.

Em quarto lugar, Ele quis submeter-se à lei mosaica, justamente, para nos liberar dela, e nos dar uma lei muito mais perfeita que é a lei da graça.

Portanto, após a vinda de Cristo, os ritos e as cerimônias mosaicas devem cessar, sob pena de falta grave, pois continuar a praticá-las significa negar que o Messias já veio e que nos deu uma lei muito mais perfeita. Antes da vinda de Cristo e durante a sua vida na Terra, a lei mosaica estava viva e vivificava as almas dando a graça. Depois da morte de Cristo até o ano 70, aproximadamente, a lei já estava morta, pois Cristo já havia instituído a nova aliança em seu sangue na Cruz, mas ela ainda não era mortífera. Isto significa que entre a morte de Cristo e a destruição do templo no ano 70, a lei mosaica estava morta, mas sua prática não era, ainda, um pecado, e por isso os Apóstolos continuaram a frequentar o Templo até essa data. A lei estava morta, mas sua prática não matava a alma. Após a destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70, a lei mosaica torna-se morta e mortífera, quer dizer, praticá-la é um pecado grave, pois significa dizer que o Messias ainda não veio ou que não instituiu uma nova aliança, o que vai contra a fé.

Claro que, ao obedecer às cerimônias e ritos da lei de Moisés sem estar minimamente obrigado a isso, Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina uma obediência perfeita ao mandamentos, às leis da Igreja e aos superiores quando os superiores nos dão ordens legítimas. Vale destacar que mesmo o repouso do sábado nunca foi violado pela Salvador quando Ele realizava milagres, apesar das acusações dos fariseus. O repouso sabático não proibia as obras divinas e os milagres são, evidentemente, uma obra divina. No sétimo dia, Deus cessou a criação, mas não parou de agir na conservação e no governo do mundo. Portanto, o milagre, sendo obra divina, era perfeitamente possível e lícito no sábado. Segundo, não eram proibidas as obras necessárias para a saúde do corpo no repouso sabático. A lei permitia até que se libertasse um jumento que tivesse caído no poço e não permitiria a cura de uma pessoa doente? Além disso, os milagres realizados por Cristo tinham por objetivo não só o bem do corpo, mas também o da alma. Finalmente, o repouso sabático não proibia os atos de culto. Quando Nosso Senhor pede para que o paralítico carregue seu leito no dia de sábado, por exemplo, Ele ordena ao homem que faça um ato de culto a Deus, pois o ex-paralítico ao carregar seu leito proclama o milagre, a misericórdia e a onipotência divinas, o que é um ato de culto a Deus. Portanto, Nosso Senhor está longe de ser o primeiro revolucionário como querem alguns. Quem adulterava o sábado, querendo proibir o que era permitido, eram os fariseus. E nisso consiste a revolução: em adulterar as leis divina e natural ajustando-as aos nossos próprios gostos. Os revolucionários eram, portanto, os fariseus. Nosso Senhor é para nós, no Evangelho de hoje, exemplo de perfeita obediência e submissão à vontade de Deus. E mais uma vez Ele mostra toda a sua caridade por nós ao se submeter à lei para o nosso bem, para que possamos ter uma lei muito mais perfeita.

Gostaria de fazer também um breve comentário a respeito da Epístola e do que hoje muitos chamam de fé adulta. Hoje se ouve com frequência dizer que devemos ter uma fé adulta e, no mais das vezes, isso significa que não devemos aceitar tudo o que a Igreja sempre ensinou. Uma fé adulta significa, então, recusar o que não nos agrada ou recusar aquilo que não estamos dispostos a acreditar, embora a Igreja o tenha ensinado sempre. Assim, muitos políticos, por exemplo, se dizem católicos de fé adulta, e, como tal, são favoráveis ao aborto, ao divórcio, ao casamento homossexual. Essa fé chamada de adulta é exatamente o que São Paulo chama de meninice e de escravidão aos rudimentos do mundo na Epístola de hoje. Portanto, a fé adulta, entendida como essa liberdade diante do que a Igreja sempre ensinou, é na verdade uma escravidão aos rudimentos do mundo, uma escravidão que impede de ver a Verdade e de amá-la.

Se queremos que Deus mande aos nossos corações o Espírito do seu Filho, para fazer de nós seus filhos adotivos, devemos ter uma obediência perfeita à vontade de Deus, aos mandamentos e às leis da Igreja. Devemos também ter uma fé que aceita tudo aquilo que está contido no depósito da revelação confiado à Igreja Católica Apostólica Romana.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] O Menino Jesus nos ensina pelo presépio de Belém

Sermão para a Solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
25 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Deus tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos a nossos pais pelos  profetas, ultimamente, nestes dias, falou-nos por meio de seu Filho (Heb. I, 1,2)

Hoje, no dia do nascimento do Menino Jesus, no dia do nascimento do Verbo de Deus, no dia do nascimento da Palavra Eterna de Deus no tempo, não convém que o sacerdote faça uso de suas próprias e pobres palavras. Convém que o Menino Jesus, o Verbo humanado, pregue hoje o sermão. E como não podia ser diferente, seus ensinamentos são a verdade e estão expressos no presépio em Belém, nas circunstâncias de seu nascimento. Ele não fala uma palavra, sendo um recém-nascido, mas aquilo que Ele nos diz é sublime.

Escutemos atentamente e com devoção o que o Menino Jesus tem para nos falar, poie é simples, mas extremamente profundo e necessário para o bem de nossa alma.

O Menino Jesus nos ensina por meio da noite. Ele nasceu em uma das noites mais longas do ano e à meia-noite. Ele fez isso para que seu nascimento fosse conhecido de um pequeno número, nos ensinando a humildade, mas também para nos ensinar que Ele é a luz do mundo, que vem a esse mundo para iluminar a todos os homens, que jaziam nas trevas do pecado.

O Menino Jesus nos fala por meio do feno, do frio, dos panos que o envolvem. Com todas essas coisas, Ele nos ensina a mortificação, sem a qual pouco podemos fazer no caminho da salvação.

O Menino Jesus nos fala por meio do boi e do burro ali presentes. Isaías havia dito: o boi conhece o seu possuidor, e o asno, o estábulo do seu dono. Aí no boi e no asno estão significados os judeus e os pagãos. No asno, os pagãos porque eles, em particular, não compreenderam, antes da vinda de Cristo, a honra a que tinham sido elevados por Deus e haviam se tornado como asnos por causa de seus pecados e falsas religiões (referência ao Salmo 48, 13 e 21). Nada mais natural, em um estábulo, que a presença de um boi e de um burro, sobretudo em tempo de censo, no qual havia muitos viajantes que usavam bois e burros para se deslocarem a suas cidades de origem. Com a presença deles, a Divina Criança mostra que veio salvar a todos, judeus e gentios.

O Menino Jesus nos fala por meio da manjedoura. A manjedoura é o local em que os animais do estábulo se alimentam. A Divina Criança nos ensina que será para a nossa alma verdadeiro alimento. “Eu sou o Pão Vivo que desceu dos céus”, dirá Ele mais tarde.

O Menino Jesus nos fala por meio do estábulo. Toda a Terra e tudo o que ela contém pertence a essa criança. Ao querer nascer no estábulo, então, a Divina Criança nos ensina o desapego dos bens desse mundo… Ele nos ensina a usar dos bens que possuímos, sejam grandes ou pequenos, para servi-lo, unicamente. Ele nos ensina a pobreza de espírito, que faz de Deus o nosso verdadeiro tesouro. Sem esse desapego dos bens terrenos ninguém pode salvar-se.

O Menino Jesus nos fala por meio da cidade em que nasceu. Belém é a cidade de Davi. Nascendo em Belém, Ele nos ensina que é o filho de Davi, o Messias prometido desde a queda de Adão. E Belém significa casa do Pão. O Menino Deus nos ensina, insistindo, que Ele vai se tornar o alimento de nossas almas pela Santa Eucaristia.

O Menino nos fala por meio do censo estabelecido pelo Imperador e nos mostra que Ele é o Senhor da história e que mesmo os mais poderosos desse mundo estão sob seu domínio, pois Ele quis que o Imperador fizesse o censo para poder nascer em Belém e cumprir as profecias.

O Menino Jesus nos fala por meio dos pastores. São eles os primeiros homens a serem avisados da boa-nova. Por que são pobres? Sim, mas pobres de espírito. São os primeiro sorque são judeus e judeus que vigiavam o rebanho, trabalhando mesmo durante a madrugada. Com a presença desses pastores, o Menino Deus nos ensina que devemos vigiar e orar sempre, para podermos alcançar a verdadeira alegria.

O Menino Jesus fala por meio do Anjo. O anjo, provavelmente São Gabriel, se alegra com o nascimento de Jesus e o anuncia aos pastores e junto com grande multidão de anjos canta a Glória de Deus e sua infinita bondade. O anjo se alegra e se rejubila, pois com o nascimento do Menino Jesus, Deus será mais amado, em pouco tempo, do que o foi durante os milhares de anos que precederam o nascimento de Jesus. Com a presença do Anjo, a Divina Criança nos ensina a alegria de exercer o apostolado, de ajudar os outros a conhecer, amar e servir a Deus. Ele nos ensina a alegria que é a salvação.

O Menino Jesus fala por meio de São José. É um carpinteiro o responsável pela Santa Família. Com a presença de São José no estábulo, a divina criança nos ensina a servir e defender prontamente a Cristo e a Nossa Senhora. Ele nos ensina a defender a Igreja e a servi-la com extrema fidelidade e bravura, pois nesse momento poderíamos dizer que a Igreja se resumia aos três.

O Menino Jesus fala por meio de Maria Santíssima. É uma Virgem que se torna Mãe de Deus. Com a presença de Nossa Senhora no estábulo, Ele nos ensina que a castidade, a pureza, a submissão completa à vontade de Deus traz grandes frutos. É a virtude que traz grandes frutos e frutos de vida eterna. A santidade de Nossa Senhora trouxe a salvação, que é Cristo, não só para ela, mas para todos os homens.

O Menino Jesus escolheu todas essas circunstâncias para nos ensinar que Ele é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus: esse Menino  é o Senhor dos anjos e dos homens, das cidades, dos astros do céus, dos animais, de todos os elementos da natureza. O Menino Jesus escolheu todas essas circunstâncias para que reconheçamos nEle o nosso Salvador.

Se o Menino Deus nos ensina tantas coisas e sofre tanto por nós, Ele nos pede uma só: que o amemos em troca, praticando o que nos ensina.  E Ele pede que o amemos profundamente. O Verbo se fez carne. Deixemos, então, o nosso coração de pedra, insubmisso a Deus. O Menino Jesus nasceu para que possamos amar a Deus sobre todas as coisas, retribuindo seu amor infinito.

Grande alegria, caros católicos! Um pequenino nos nasceu o Filho de Deus nos foi dado.

Puer natus est nobis et Filius datus est nobis.

Feliz e Santo Natal a todos.

Após a Missa haverá a adoração do Menino Jesus, feita no banco de comunhão. Terminada a adoração, todas as crianças estão convocadas a vir na sacristia com seus pais para receberem uma lembrancinha de natal preparada por uma fiel.

[Sermão] Advento: o pecado original, o motivo da encarnação e a salvação de Deus

Sermão para o Quarto Domingo do Advento
23 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Todo homem verá a salvação de Deus. (Lc, III, 6)

A Salvação de Deus é Jesus Cristo. E a Salvação de Deus está próxima. Faltam dois dias para seu nascimento. Para compreender bem a salvação de Deus e toda a bondade da Santíssima Trindade, precisamos voltar ao começo da história, ao pecado original e ao motivo da encarnação.

Deus nos criou gratuitamente, sem nenhum benefício para si e sem que tivéssemos qualquer direito a existir. E Deus não só nos criou como elevou também gratuitamente a nossa natureza para que, sendo fiéis na terra, pudéssemos ir para o céu participar de sua própria vida, uma vida perfeita, vida de felicidade plena. Deus criou Adão e Eva – dos quais todos somos descendentes sem exceção – em estado de graça, em amizade com Ele. E todos nós deveríamos nascer nesse mesmo estado. Todavia, nossos primeiros pais cometeram o pecado original – que foi um pecado de orgulho – ao desejarem se tornar semelhantes a Deus por meio do fruto proibido. Com o pecado de Adão e Eva, perdemos não só a graça divina, como também os outros dons que Deus tinha dado a nossos primeiros pais e que se transmitiriam a nós: perdemos a imortalidade; perdemos a impassibilidade, que é a ausência de sofrimentos; e perdemos a integralidade, que é a submissão perfeita das paixões / dos sentimentos à razão e à vontade. Ao nos tirar isso, Deus não cometeu conosco nenhuma injustiça, pois Adão era o chefe e o representante de todo o gênero humano. Além disso, todos esses bens não eram devidos a nossa natureza, mas eram dados gratuitamente por Deus.

O pecado original foi, portanto, uma aversão a Deus e uma conversão à criatura. Nossos pais abandonaram a Deus e voltaram-se para si mesmos, buscando assemelhar-se a Deus sem a ajuda divina.

O pecado original foi, então, uma ofensa grave a Deus. E foi, na realidade, uma ofensa infinita, pois a ofensa se mede a partir da dignidade da pessoa ofendida. Quanto mais digna for a pessoa ofendida, maior será a ofensa. Uma ofensa contra um cidadão comum é menos grave do que a ofensa feita ao Presidente da República. A ofensa feita ao Presidente é menos grave do que a ofensa feita ao Papa. Ora, Deus tem uma dignidade infinita. A ofensa feita a ele pelo pecado original foi, então, uma ofensa infinita. Como reparar, porém, uma ofensa infinita? Como satisfazer por tal ofensa e recuperar a graça perdida?  A satisfação consiste em dar ao ofendido algo que lhe seja mais agradável do que a ofensa lhe foi desagradável. O homem pode oferecer todo o seu ser, todas as suas faculdades, tudo… ainda assim sua satisfação será finita, limitada, incapaz de agradar mais a Deus do que o pecado o ofendeu, pois o pecado o ofendeu infinitamente. O homem sozinho não poderia satisfazer nem merecer a graça.

Deus poderia ter abandonado o pecador sem cometer uma injustiça… Mas Deus é infinitamente misericordioso e vendo o homem na miséria do pecado, quis redimi-lo, quis salvá-lo. Deus poderia simplesmente ter perdoado o pecado dos homens, contentando-se de suas satisfações limitadas. Deus poderia ter encarregado um anjo…  Mas Deus decidiu encarnar-se, assumir um corpo humano para nos salvar. E fez isso livremente.

A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo, se fez carne e habitou entre nós. E porque Deus escolheu e preferiu essa solução, a solução da encarnação? Deus preferiu a encarnação por que é a maneira mais perfeita de nos salvar, conciliando a justiça com a caridade divina. O Verbo Divino quis se encarnar por causa da justiça, mas, sobretudo, para mostrar a caridade que tem pelos homens.

Deus quis nascer no estábulo de Belém por causa da justiça. Com efeito, só o Verbo Encarnado, Nosso Senhor Jesus Cristo, poderia satisfazer perfeitamente a justiça divina, pois Cristo é homem e Deus. Outros modos de salvar o homem sem a encarnação do Verbo não seriam contra a justiça, mas também não seriam perfeitamente justos. Em Cristo, as naturezas humana e divina estão unidas. As duas naturezas estão unidas, mas sem confusão. A duas naturezas permanecem distintas uma da outra, mas sem separação. União sem confusão. Distinção sem separação. Em Cristo, as duas naturezas, divina e humana, estão unidas na pessoa divina, na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. É um mistério, claro.

Por causa dessa união das naturezas humana e divina em Nosso Senhor, qualquer ação sua, por menor que seja, tem um valor infinito, pois as ações pertencem à pessoa e em Cristo a Pessoa é divina. Assim, se minha mão derruba esse púlpito, é minha pessoa que derruba o púlpito e não simplesmente minha mão. Quando Cristo age, é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que age. Portanto, Nosso Senhor, sendo Deus e homem, é capaz de satisfazer plenamente pelo pecado original e por todos os pecados do mundo inteiro. As suas ações, sendo Ele homem e Deus, são feitas com caridade infinita e são, consequentemente, infinitamente agradáveis a Deus. Uma só ação de Cristo satisfaz por todos os pecados do mundo inteiro, desde o pecado original até o final dos tempos. Assim, com a vinda de Cristo ao mundo, com sua encarnação e nascimento, paixão e morte, a justiça é perfeitamente observada.

Todavia, por excelente que seja a justiça divina, o Verbo quis vir ao mundo, sobretudo para mostrar aos homens a sua caridade. Deus quis se encarnar para mostrar aos homens o seu amor infinito para com eles. Ora, uma das maneiras de se medir o amor que se tem por alguma coisa, é o quanto nós estamos dispostos a sofrer para conseguir essa coisa, ou para guardá-la. Os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em seu nascimento, durante sua vida escondida, durante sua vida pública, sua paixão e morte nos mostram, portanto, o quanto Ele nos quer bem e o quanto Ele age para o nosso bem, quer dizer, para a nossa salvação.

Se Cristo quis vir ao mundo como uma criança, incapaz de falar, incapaz de alimentar-se sozinho, esquecido do mundo, rejeitado pelos seus, foi por amor dos homens. Se Cristo quis vir ao mundo em um estábulo, sobre uma manjedoura, no frio da noite, e ser coberto com alguns poucos panos, foi por amor dos homens. Se Cristo quis depender de sua mãe, Maria Santíssima, e de São José foi para mostrar seu amor por nós. Desde o primeiro instante de seu nascimento o Menino Jesus sofre por nós, para nos mostrar o seu amor infinito por nós, que visa somente uma coisa: a nossa salvação.

E que quer o Menino Deus, caros católicos, mostrando o amor infinito de Deus por nós, ao vir mundo e ao sofrer desde o momento de sua encarnação e nascimento?

Ele quer uma só coisa: ele quer que o amemos em troca. Ele mesmo o diz: “Eu vim trazer o fogo (do amor divino) à terra e que quero eu, senão que ele acenda?” (Lc XII, 49) Que quer o Menino Jesus no estábulo, senão que o amemos? É esse, portanto, o objetivo da encarnação e de tantos sofrimentos suportados por Nosso Senhor: mostrar o amor divino por nós para que o amemos em troca.

O Salvador falou qual é esse amor que espera de nós: “aquele que retém os meus mandamentos e os guarda, é esse que me ama” (Jo XIV, 21). Portanto, devemos considerar o amor de Deus por nós e amá-lo em troca, retendo seus mandamentos, quer dizer, conhecendo-os e guardando-os, quer dizer, praticando-os. Portanto, não se trata de um amor sentimental, mas de um amor que se encontra na vontade. Amar a Deus é querer bem a Deus e fazer o bem a Deus, o que se realiza pela generosa prática de seus mandamentos.

Olhemos, então, para a nossa Salvação, que está no presépio em Belém. Para vê-lo, no entanto, é preciso seguir a voz que clama no deserto, a voz do precursor, São João Batista. Na Antiguidade, quando um grande rei era recebido, era preciso preparar os caminhos pelos quais ia passar, retificando-os, endireitando-os, nivelando o terreno, preenchendo os buracos e aplanando as elevações. O Tempo do Advento e esses dois dias que nos restam servem para preparar a nossa alma para receber o Rei dos Reis. Todo vale será terraplanado, i.e., devemos deixar de lado nossa vida espiritualmente estéril e rebaixada, para preenchê-la com a graça de Deus e elevá-la com a prática das virtudes. Todo monte e colina será arrasado, quer dizer, precisamos combater o nosso orgulho, reconhecendo que somos pouca coisa e que todo o bem que temos e fazemos vem de Deus, e devemos arrasar montes e colinas porque Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes como diz a Sagrada Escritura (Tiago, IV, 6). Os caminhos tortuosos serão endireitados, i.e., devemos ordenar tudo a Deus, submetendo nossas paixões à razão, e submetendo a razão e à vontade a Deus. Os caminhos escabrosos serão nivelados, quer dizer, as dificuldades da vida vividas em união aos sofrimentos de Cristo tornar-se-ão bem mais suaves. Tendo preparado os caminhos para o Reis dos reis, podemos olhar para a nossa salvação que está no presépio em Belém.

No Menino Deus colocado na manjedoura está, junto com a paixão e morte na Cruz, a maior prova de caridade divina para conosco, pobres pecadores. Essa criança que está na manjedoura – verdadeiro Deus e verdadeiro homem – nasceu para nós e nos foi dada para a nossa salvação. O principal motivo de sua vinda ao mundo e de todos os seus sofrimentos é esse: suscitar em nós o amor a Deus para que possamos nos salvar. Que os céus derramem – do alto – o orvalho e que as nuvens chovam o Justo. Abra-se a terra e brote o Salvador. Se os céus e todas as criaturas narram a glória de Deus e nos mostram as suas perfeições, o nascimento do Salvador nos mostra limpidamente o amor infinito de Deus por nós. O Verbo se fez carne para nos salvar … E nós? Continuaremos com um coração de pedra, incapaz de nos converter diante da caridade infinita de Deus mostrada no nascimento do Salvador? Prostremo-nos diante do presépio e peçamos ao Menino Jesus a graça de amá-lo e de perseverar nesse amor até o final de nossas vidas. Um pequenino nos nasceu, o Filho de Deus nos foi dado.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] Advento: alegria

Sermão para o Terceiro Domingo do Advento (Gaudete)
16 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Gaudete semper in Domino. Iterum dico: gaudete. Alegrai-vos sempre no Senhor. Digo de novo: alegrai-vos.

O apóstolo São Paulo nos pede hoje a alegria. E mais do que nos pedir a alegria, suas palavras são uma ordem para que nos alegremos. É, porém, possível obrigar alguém a ser alegre? É possível dar uma ordem a alguém para que a pessoa seja alegre? Para responder a essa questão, devemos saber o que é a alegria. A alegria consiste no fato de possuirmos um bem que desejamos. Quando desejamos algo, alegramo-nos quando conseguimos essa coisa. Aquele que procura um emprego, por exemplo, alegra-se ao alcançá-lo.

A alegria consiste, então, em possuir um bem que desejamos. Essa alegria será verdadeira se o bem que possuímos é um verdadeiro bem e será falsa se possuímos um falso bem, se possuímos um bem aparente. O bem de cada coisa consiste em agir segundo a sua natureza. Assim, cada ser será verdadeiramente alegre na medida em que segue as leis dadas por Deus ao ser criada. Uma alegria fora da lei de Deus será uma alegria aparente, será uma alegria falsa que terminará necessariamente em tristeza. Claro que somente os animais e os seres espirituais podem ser alegres. A alegria dos animais será uma alegria sensível. A alegria do homem será, sobretudo, espiritual. Dessa forma, o cachorro será alegre na medida em que age como cachorro, na medida em que come, dorme, brinca, faz companhia a seu dono etc. O homem será alegre na medida em que agir segundo a sua natureza. Ora, o homem não tem uma natureza puramente animal. Ele tem uma natureza que é também espiritual. O homem é um animal racional. O bem do homem é agir conforme à sua natureza racional. Assim, a alegria do homem consistirá em agir segundo a sua natureza racional.

A natureza racional significa a inteligência e a vontade. A inteligência foi feita para conhecer a verdade. A vontade foi feita para amar o bem. O homem será verdadeiramente alegre na medida em que conhecer a verdade, na medida em que amar essa verdade, na medida em que colocar em prática essa verdade. Todavia, não basta ao homem qualquer verdade ou qualquer bem. O homem só será verdadeiramente alegre no conhecimento da verdade suprema e no amor ao bem infinito. Claro que essa verdade e esse bem só podem ser Deus. A verdadeira felicidade do homem é Deus. Por isso São Paulo diz: alegrai-vos não com qualquer coisa, mas no Senhor. No Senhor, ele diz. A felicidade do homem é conhecer a Deus e amar a Deus. E conhecê-lo e amá-lo tal como Ele se revelou a nós, conhecendo e aderindo ao que Ele nos ensinou e colocando em prática os seus ensinamentos. Eis, então, a alegria do homem: servir a Deus nessa terra para ser eternamente feliz no céu, pois no céu nós conheceremos perfeitamente a Verdade e amaremos a Verdade plenamente: seremos, portanto, infinitamente alegres.

São Paulo pode, então, nos dar a ordem de sermos felizes no Senhor, pois a felicidade é mera consequência da nossa obrigação de conhecer, amar e servir a Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Verdade, o Caminho, a Vida. Se somos obrigados a vivir em estado de graça, somos obrigados a ser felizes. Se seguimos Nosso Senhor, estando em estado de graça, em amizade com Ele, sem pecado mortal, devemos ser verdadeiramente alegres, o máximo possível nesse vale de lágrimas, pois possuiremos o maior bem que podemos possuir. O cristão é, portanto, necessariamente alegre. E sua alegria consiste justamente em praticar com seriedade a religião. Uma das grandes tentações do demônio é tentar nos convencer de que a prática da religião é algo triste e melancólico, como se tivéssemos de deixar de lado os maiores bens para poder servir a Deus. Isso é uma mentira… Ao servir a Deus nós abandonamos bens aparentes, falsas alegrias, quer dizer, abandonamos tudo aquilo que pode nos afastar de Deus e ofendê-lo. O cristão é o homem mais feliz já aqui nessa terra. É preciso ter consciência disso.

Claro que essa alegria é, antes de tudo, uma alegria espiritual e não necessariamente uma alegria sentimental. Estamos aqui nessa terra em verdadeiro vale de lágrimas. Portanto, a tristeza também é natural e boa quando perdemos verdadeiros bens: a saúde, um familiar, um bem material… A tristeza que surge desses males é perfeitamente legítima, mas deve ser uma tristeza moderada, pois a saúde, os entes queridos não são o maior bem. O maior bem é Deus e enquanto estamos unidos a Ele pela graça, devemos ser profundamente felizes. Muitas vezes, na verdade, a perda desses bens inferiores nos permite uma união maior com Deus, aumentado a nossa alegria no futuro. É por isso que os santos sofrem tanto, mas continuam profundamente alegres. Eles entendem que esses sofrimentos permitem uma maior união com Nosso Senhor Jesus Cristo e eles sabem que isso é a verdadeira alegria. Quanto mais uma pessoa for santa, mais ela será verdadeiramente alegre. Se a união com Deus é o bem supremo e causa da verdadeira alegria, o maior mal que existe é a perda de Deus pelo pecado grave. Se o pecado grave é o maior mal, ele deve ser também o motivo de maior tristeza, mas uma tristeza sem desespero, pois a tristeza de um pecado cometido deve nos levar, justamente, a recobrar a felicidade pelo perdão desse pecado.

Venhamos, porém, à alegria do Advento e, em particular, desse terceiro domingo do Advento. A alegria se manifesta hoje na liturgia pela mudança da cor dos paramentos (de roxo para rosa), se manifesta no órgão que soa, nas flores que decoram o altar. Nos textos da Santa Missa, sobretudo nas primeiras palavras do Intróito que dão o tom para toda a liturgia.

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Como vimos, a alegria consiste na posse do verdadeiro bem que é Deus, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ora, é pela vinda de Nosso Senhor ao mundo que nós fomos redimidos, é pela vinda de Nosso Senhor ao mundo que nós podemos nos unir a Deus, deixando de lado o pecado. O nascimento de Nosso Senhor é a própria alegria que vem sobre a terra. O homem, pelo pecado de Adão, não tinha mais os meios para ser verdadeiramente alegre. O homem não podia reparar pelo pecado original, pois esse é uma ofensa infinita a Deus e o homem é uma pobre criatura finita. Deus Pai mandou, então, o seu Filho, que também é Deus, para nos salvar, para nos trazer de volta a alegria.

O Santo Evangelho nos mostra a alegria pela vinda de Cristo. Até a vinda de São João Batista, precursor de Cristo, é motivo de grande alegria, pois anuncia a encarnação. O anjo diz a São Zacarias, pai de São João Batista: ele será para ti motivo de gozo e de alegria e muitos se alegrarão nasceu nascimento (Lc I, 14). Os Reis Magos, vendo novamente a estrela que os conduzia, ficaram possuídos de grandíssima alegria (Mt II, 10). A estrela que nos conduz até Belém é o tempo do advento. Com a voz de Maria, São João Batista, ainda no seio de Santa Isabel se alegra ao reconhecer Nosso Senhor Jesus Cristo: a criança estremeceu de alegria no meu seio (Lc I, 44), diz a prima de Nossa Senhora. E Maria responde: meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador (Lc I, 47). O anjo diz aos pastores: O anjo disse-lhes: Não temais, eis que vos anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo (Lc II, 10). Os anjos cantam Glória a Deus nas alturas (Lc II, 14).

No advento, portanto, nossa alegria é imensa. Eis que o Salvador já está próximo, ele está próximo de vir ao mundo para operar a redenção, para nos trazer a superabundância da graça. Sem Cristo, sem a sua encarnação, sem o seu nascimento no estábulo de Belém, sem sua paixão e morte, estaríamos condenados à tristeza eterna.

Com o nascimento de Nosso Senhor, é a felicidade que deve começar a brotar em nossas almas. A expectativa do nascimento do Menino Jesus, do Menino Deus, já é para nós motivo de grande alegria.  A expectativa dos justos causa alegria (Prov X, 28), nos diz a Sagrada Escritura no Livro dos Provérbios.

Alegria porque recordamos esse fato histórico e a bondade infinita de Deus contida na vinda de Cristo ao mundo. Alegria porque assim como Cristo nasceu no estábulo de Belém, trazendo ao mundo a verdadeira felicidade, Ele quer agora trazer a felicidade em nossas almas. Ele quer que as almas reencontrem essa verdadeira felicidade que consiste em conhecê-lo, amá-lo e servi-lo.

Não façamos como os fariseus que foram interrogar São João Batista: Nosso Senhor Jesus Cristo estava no meio deles, e eles o desconheciam. O mundo hoje está, nessa época do Natal, cheio de alegria, mas na maior parte das vezes é uma alegria aparente, uma alegria falsa, porque é uma alegria sem o Menino Jesus. O Menino está no mundo, mas o mundo o ignora. Para que nossas almas reencontrem a verdadeira felicidade, é preciso que nos convertamos, abandonemos o velho homem a fim de que um novo homem possa nascer com o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um novo homem alegre, verdadeiramente alegre. Alegre no Senhor.

Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: alegrai-vos.

[Sermão] Advento: mortificação e penitência

Sermão para o Segundo Domingo do Advento
9 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No domingo passado, caros católicos, dissemos que o Advento é um tempo litúrgico em que a penitência se mistura com a alegria. A perspectiva da vinda de Nosso Senhor ao mundo, de seu nascimento nos enche de esperança e de alegria, mas, ao mesmo tempo, nos leva a preparar adequadamente a nossa alma para que o Salvador possa encontrar lugar nela, o que se faz pela penitência.

Quando falamos aqui em penitência, temos em vista duas coisas distintas. A primeira delas é a mortificação. A segunda é a virtude da penitência. As duas são fundamentais para uma boa preparação de nossa alma para receber a graça do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A mortificação consiste em abster-se de coisas agradáveis e suportar e impor-se coisas desagradáveis. Claro que estamos falando aqui de abster-se de coisas agradáveis e que são lícitas. Pois abster-se de coisas agradáveis e que são pecaminosas não é, propriamente, mortificação e sim obrigação básica de quem quer se salvar. Entendida, então, como a abstenção de algo agradável e em si lícito, a mortificação parece, à primeira vista, uma prática desordenada e perversa. Mas, ao contrário, devemos dizer que a mortificação é boa.

Primeiramente, porque é mandada pela Igreja, que impõe a abstinência de carne ou a substituição eventual dessa abstinência por outra mortificação em todas as sextas-feiras do ano, por exemplo. Não faz muito tempo, cinquenta anos, a quaresma tinha vários dias de abstinência e jejum, as sextas-feiras do ano eram levadas a sério, havia quatro vezes durante o ano as chamadas têmporas em preparação para as estações do ano e as quatro têmporas também eram dias de penitência. Havias as vigílias das grandes festas que também eram dias de penitência e mortificação. A mortificação era muito mais favorecida pelos preceitos da Igreja do que atualmente.

A mortificação é boa porque ela é necessária para frear nossas paixões. E não precisaríamos nem da Revelação para compreender isso. Basta saber como funcionam as faculdades humanas. Se satisfazemos nossas inclinações em tudo o que é lícito, elas ganham cada vez mais força. E ganharão tanta força e se acostumarão tanto a fazer o que lhes é agradável que terminarão arrastando a nossa inteligência e a nossa vontade para o que é pecaminoso. E isso se agrava com o pecado original, pois, como consequência dele, nos encontramos inclinados ao mal. Se não nos abstivermos, em certa medida, daquilo que nos agrada, por mais que seja lícito, caminharemos para o precipício. É preciso praticar a mortificação, assim, mesmo em coisas lícitas para evitar o pecado.

A mortificação cristã não é um fim em si mesmo, mas um meio absolutamente necessário para evitar o pecado e para desenvolver a vida sobrenatural. A mortificação se inspira no amor a Deus e no ódio ao pecado e deve afastar todo orgulho e todo pessimismo. Trata-se de rejeitar algumas coisas que nos agradam a fim de poder manter ordenadas nossas paixões para a prática do bem, das virtudes. Trata-se de recusar um bem e aceitar ou infligir-se um mal, a fim de alcançar um bem muito superior que é a manutenção e o progresso na graça.

Todavia, a mortificação não consiste em evitar tudo o que é agradável e lícito. Isso seria, inclusive, contra a natureza. A mortificação concerne em primeiro lugar aos sentidos externos.

É preciso mortificar os olhos, evitando a curiosidade, por exemplo. Essa mortificação facilitará muito o combate a olhares e pensamentos impuros.

É preciso mortificar o paladar, comendo às vezes o que nos é desagradável ou comendo o que nos é menos agradável, evitando comer fora de hora ou com ardor. Isso evitará a gula e a embriaguez e diminuirá a tendência a pecados contra o sexto mandamento.

É preciso mortificar a língua, por exemplo, não falando sempre o que temos vontade. Isso tornará mais eficaz o combate contra os pecados da língua: calúnia, difamação, etc.

É preciso mortificar o olfato, suportando os maus odores, evitando, por exemplo, ao menos o excesso de perfume.

É preciso mortificar o tato, evitando a comodidade excessiva, por exemplo.

A mortificação diz respeito também às faculdades internas: privar-se da memória e da imaginação de certas coisas, afastar a mente de pensamentos inúteis, reprimir imediatamente os movimentos de afeto desordenados, etc.

Eis aí alguns exemplos de mortificações necessárias de serem praticadas, a fim de fortalecer a alma. A mortificação deve ser praticada com generosidade, mas também com discernimento. Não bastam as mortificações e penitências impostas pela Igreja e que hoje são tão escassas. São necessárias práticas pessoais de mortificação. Sempre, todavia, com discernimento e prudência.  De nada adiantaria, por exemplo, dormir numa cama dura, se no dia seguinte e por causa disso, a pessoa não tiver forças para trabalhar. Portanto, quando a mortificação for maior, é necessário o conselho de um bom sacerdote.

A mortificação também inclui a aceitação com paciência das contrariedades e das penas da vida, como doenças, mortes, etc. É preciso aceitar essas mortificações involuntárias com generosidade, pois só há duas possibilidades. Ou se aceita com paciência e transformamos um mal em bem, adquirindo méritos, ou transformamos o mal em um mal muito pior ao resmungar, revoltar-se ou impacientar-se, pois haveria aí um mal moral, recusando-nos a nos conformar à providência divina.

A repulsa a qualquer tipo de sofrimento, seja voluntário ou involuntário, e a falta de generosidade diante das contrariedades são hoje um dos grandes impedimentos para a santidade.

Sem sofrimento não há santidade. Sem Cruz não há Ressurreição. Sem o frio e o desconforto da manjedoura não há a alegria dos anjos e pastores.

Essa é a mortificação que devemos começar a praticar durante o Advento para nos preparar para o nascimento de Cristo. E depois do nascimento de Cristo, é preciso continuar esse esforço espiritual a fim de que Cristo permaneça em nossas almas.

Mas a penitência do Advento diz respeito também, como falamos, à virtude da penitência que está intimamente relacionada ao Sacramento da Confissão. A virtude da penitência é a virtude que nos inclina a detestar o próprio pecado enquanto é uma ofensa feita a Deus e a virtude da penitência nos inclina também ao firme propósito de correção e de satisfação. A virtude da penitência no tempo do Advento deve nos levar, principalmente, a duas coisas.

Primeiramente, a penitência no Advento deve nos levar a práticas que, unidas aos sofrimentos de Cristo, unidas aos sofrimentos do Menino Jesus, possam reparar a ordem que foi lesada pelos nossos pecados. Nesse caso, as mortificações passarão a ser não somente um meio de evitar o pecado, mas serão também satisfação pelos pecados cometidos. A virtude da penitência sob esse aspecto tem sido muito negligenciada nesses últimos pontos. Não bastam as práticas de penitência impostas atualmente pela Igreja, que são muito raras. Atualmente, como falamos, só as sextas-feiras são dia de penitência e só há dois dias de jejum no ano: sexta-feira santa e quarta-feira de cinzas. A satisfação não é, atualmente, muito favorecida. É, então, preciso praticar a virtude da penitência, satisfazendo por nossos pecados com práticas pessoais, sempre com discernimento.

Em segundo lugar a penitência no Advento deve nos levar à confissão. Claro que não há obrigação estrita de confessar-se durante o advento. A obrigação da confissão é confessar-se uma vez por ano. Todavia, é muito conveniente que um tempo litúrgico de penitência culmine num ato perfeito da virtude de penitência que é uma boa confissão, uma confissão que seja, de fato, uma vida nova.

Advento é tempo de penitência. Tempo de mortificação para evitar o pecado. Tempo de reparação pelo pecado. E tudo isso para ter um real valor deve ser feito em união com as mortificações e satisfações de Nosso Senhor Jesus Cristo. E tudo deve ser feito com humildade. Advento é tempo extremamente propício para uma boa confissão. Próximo domingo, domingo Gaudete, falaremos da alegria do Advento.

 Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito santo. Amém.

[Sermão] O Tempo do Advento

Sermão para o Primeiro Domingo do Advento
2 de dezembro de 2012 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria. […] Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós.

Entramos hoje, caros católicos, no Tempo do Advento, que como todos sabem é o tempo de preparação para a festa do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, a segunda festa mais importante no calendário litúrgico após a Páscoa. O Natal, todavia, não é simplesmente a comemoração de um acontecimento histórico, ocorrido há mais de dois mil anos. O Natal, como toda festa litúrgica, traz consigo uma graça particular. Continuar lendo