[Sermão] A Ascensão do Senhor

Sermão para a Solenidade da Ascensão
12 de maio de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

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Se alguém ouviu falar em uma aparição de Nossa Senhora Aparecida aqui no Distrito Federal, por favor não se deixe enganar. O Padre responsável por isso abandonou a Igreja Católica, depois abandonou uma Igreja Ortodoxa, portanto cismática, e fundou sua própria religião, casando-se e divorciando-se várias vezes. O que acontece ali é obviamente algo puramente natural, não há nada de sobrenatural e não há nada de católico, apesar de Nossa Senhora Aparecida ser invocada para atrair e enganar os católicos. Mais uma vez, peço que não se deixem levar e enganar por essas supostas aparições recentes, que prejudicam as almas. (Nota do Editor: ver o sermão “A Armadilha das falsas aparições”)

Peço as orações de todos pelo Apostolado para que possa avançar materialmente e, sobretudo, espiritualmente.

Celebramos hoje a Solenidade da Ascensão. A Festa acontece sempre na quinta feira após o V Domingo depois da Páscoa, 40 dias depois da Páscoa. A Ascensão é festa de Preceito, mas como no Brasil não é feriado, não existe, para a Ascensão, a obrigação de ir à Missa na quinta-feira. Mas para que os fiéis não fiquem sem a graça própria do Mistério da Ascensão, a Igreja faz a solenidade no Domingo seguinte. A graça própria do Mistério da Ascensão está expressa na Coleta de hoje: que nós tenhamos nosso espírito já no céu, que nós possamos desejar o céu. Fazer a solenidade de Festas no Domingo não é algo tão recente quanto parece. Pelo menos desde o tempo de São Pio X há essa prática, depois que esse Santo Papa fez algumas mudanças no Calendário, tirando certas festas do Domingo. Foi permitido, então, fazer a solenidade delas no Domingo. A necessidade de fazer essas solenidades de festas de preceito surge com a prejudicial separação da Igreja e do Estado, fazendo que os feriados civis já não correspondam aos dias de preceito, prejudicando a prática da Religião.

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E o Senhor Jesus, depois que assim lhes falou, elevou-se ao céu, e está sentado à direita de Deus.

Nessa solenidade da Ascensão, caros católicos, devemos considerar a alegria que nos causa a Ascensão de Cristo, devemos considerar a importância dos 40 dias que Nosso Senhor passou na Terra depois da Ressurreição e devemos considerar a importância das últimas palavras de Cristo.

Como dissemos no último Domingo, caros católicos, a Ascensão do Senhor poderia parecer para nós motivo de tristeza, pois nos tira a presença física de Nosso Senhor. Ao contrário, porém, ela deve ser para nós motivo de grande alegria. Alegria pelo que a Ascensão significa para Cristo e alegria pelo que ela significa para nós.

Motivo de alegria pelo que a Ascensão significa para Cristo. Aqui na Terra foi condenado pelo tribunal dos homens, humilhado, tratado como um verme. Foi zombado pelos homens por ter atribuído a si a divindade e os atributos divinos. A Ascensão é a resposta de Nosso Senhor e da Santíssima Trindade. Aquele que é perseguido e humilhado por causa da justiça – e justiça quer dizer aqui santidade – será exaltado. Nosso Senhor ressuscitou e subiu aos céus por sua própria virtude, demonstrando a sua divindade. Ele sobe aos céus para sentar-se à direita do Pai. Como falamos, à direita, porque Nosso Senhor é também Deus como o Pai é Deus e como o Espírito Santo é Deus, nem inferior, nem superior, nem acima nem abaixo, mas à direita. As três pessoas são um só Deus. E ele está sentado. O estar sentado é a posição do soberano. Estar sentado à direita do Pai significa a realeza de Cristo, significa que ele detém o poder de governo, de legislador, de juiz. Nosso Senhor é rei imortal, rei das almas e das nações. Além disso, já não convinha ao corpo glorioso de Cristo habitar aqui embaixo. O corpo glorioso demanda uma habitação que corresponda à sua glória: o céu. Finalmente, com a Ascensão nós temos a certeza de que o sacrifício de Cristo na Cruz foi agradável a Deus. No Antigo Testamento, a aceitação do sacrifício era simbolizada pela fumaça que subia aos céus, dirigindo-se para Deus. No Novo Testamento, é a Ascensão de Nosso Senhor que manifesta a aceitação plena do sacrifício oferecido no Calvário. Com a Ascensão, a justiça está plenamente realizada. A obediência e a caridade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo recebem a recompensa completa com a Ascensão. Só podemos nos alegrar com tal fato.

A Ascensão de Cristo também é para nós motivo de alegria pelos benefícios que nos traz. Motivo de alegria porque Nosso Senhor age, no céu, para aplicar os méritos infinitos adquiridos durante sua vida aqui na Terra, adquiridos sobretudo durante sua paixão e morte. Alegria porque Cristo, tendo subido aos céus, nos enviou o Espírito Santo, para ensinar toda a verdade aos Apóstolos e à Igreja, e para dar a força necessária para transmitir e viver essa verdade. A Ascensão do Senhor é motivo de alegria porque favorece as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. A Ascensão aumenta o mérito da nossa fé. Nossa fé tem muito mais valor com Cristo no céu do que se Ele estivesse entre nós fisicamente, pois a fé é daquilo que não se vê. A Ascensão aumenta nossa esperança, pois aumenta o nosso desejo do céu e nos dá a certeza de que, auxiliados com a graça divina, podemos chegar até o céu. Se a cabeça subiu ao céu, também os membros devem subir. Assim, se vivermos como bons católicos, seremos membros de Cristo e subiremos ao céu junto com Ele. E Nosso Senhor diz que vai preparar o nosso lugar na casa do Pai, o que é motivo de grande esperança. A Ascensão de Cristo aumenta também a caridade. Nosso coração, nosso amor se encontra onde está o nosso tesouro. Ora, nosso tesouro é Cristo, no qual se encontra a nossa salvação. Assim, a Ascensão nos faz amar as coisas do alto e os meios para alcançar as coisas do alto, que são os mandamentos e a fé católica e impede um amor muito terreno a nosso salvador. Grande deve ser, então, nossa alegria nesse dia da Ascensão do Senhor.

Consideremos, agora, brevemente a importância dos 40 dias entre a Ressurreição e a Ascensão do Senhor. Depois de sua Ressurreição, Nosso Senhor Jesus Cristo passou quarenta dias na terra, para provar por muitos meios sua Ressurreição e para falar aos apóstolos e discípulos sobre o reino de Deus, como nos diz São Lucas nos Atos dos apóstolos hoje (Atos I). Portanto, Nosso Senhor passou esses quarenta dias instruindo os apóstolos sobre as verdades de fé, sobre a Igreja e sua constituição hierárquica, sobre as Sagradas Escrituras. Foi nesse período que, muito provavelmente, Nosso Senhor instituiu quatro dos sete sacramentos: os sacramentos da confissão, da crisma, da extrema-unção, do matrimônio. Muito pouco do que Cristo ensinou nesses quarenta dias nos foi transmitido pela Sagrada Escritura. Como é óbvio, caros católicos, nem tudo o que Nosso Senhor ensinou está contido na Sagrada Escritura, ao contrário do que pretendem os protestantes. São João Evangelista diz que Jesus fez ainda muitas coisas que não foram escritas (São João XXI, 25). É a própria Sagrada Escritura que afirma que Cristo fez coisas que não estão contidas na Bíblia, mas que se transmitem pela Tradição. Quem lê a Sagrada Escritura com honestidade e reta intenção se dá conta dessa evidência. Esses quarenta dias que antecederam a Ascensão de Cristo e os ensinamentos do Divino Mestre nesse período com a instituição de quatro dos sete sacramentos são, então, importantíssimos para a nossa salvação.

Finalmente, podemos considerar brevemente as últimas palavras de Cristo antes de sua Ascensão. As últimas palavras de uma pessoa são o seu testamento espiritual, refletem o que tem de mais importante para essa pessoa. Nosso Senhor diz aos apóstolos “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado, será salvo. O que, porém, não crer, será condenado.” Essas últimas palavras expressam aquilo que moveu Nosso Senhor durante toda a sua vida aqui na terra: o desejo de que as pessoas se salvem. Mas, para tanto, é preciso que o Evangelho seja pregado, que as pessoas tenham a fé, e uma fé viva, acompanhada das obras, da prática dos mandamentos. É preciso que elas sejam batizadas. É essa a finalidade da Igreja: pregar o Evangelho, transmitir a fé, administrar os sacramentos para levar as almas para o Céu. Diante disso, vale lembrar que começa hoje, no Brasil, a semana de oração para a unidade dos Cristãos. É preciso lembrar que como cantamos no Credo, a Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica já é una: ela é una pela unidade da fé, pela unidade dos sacramentos e pela unidade de governo, sob o Santo Padre. A Igreja de Cristo, a Igreja Católica não perdeu nem pode perder a sua unidade. Aqueles que perdem a fé, que rejeitam a autoridade eclesiástica ou os meios de santificação dados por Cristo se afastam da Igreja de Cristo e de sua unidade. A unidade não consiste em estar juntos. A verdadeira unida se faz com a mesma fé, a mesma autoridade, os mesmos sacramentos. A unidade entre Cristãos que deve ser buscada é, na verdade, a volta de hereges e cismáticos à unidade da Igreja Católica. Rezemos, durante essa semana para que aqueles que estão afastados da Igreja Católica, que é a Igreja de Cristo, possam voltar ao único rebanho de Cristo, fora do qual não há salvação. Rezemos para que isso aconteça, nessa semana em que, infelizmente, alguns erros contra a fé serão cometidos em nome de uma unidade mal compreendida. Lembremo-nos das palavras de Nosso Senhor: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado, será salvo. O que, porém, não crer, será condenado.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] Causas e efeitos da Paixão de Cristo

Sermão para o Primeiro Domingo da Paixão
17 de março de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Entramos hoje no Tempo da Paixão. Os sinais de austeridade se acentuam. O Gloria Patri é tirado do Asperges, do Intróito e do Lavabo. O Salmo 42, que expressa alegria, é omitido. A Cruz e as imagens dos santos são cobertas com panos roxos, simbolizando que a Paixão de Cristo ainda não ocorreu e, se ela ainda não ocorreu, os santos também ainda não entraram no céu. Somente na Sexta-Feira Santa a Cruz será descoberta e somente na Vigília, após a ressurreição, os santos serão descobertos.

Rezemos pelo Santo Padre, o Papa Francisco, pela Igreja e por nós mesmos, caros católicos.

Lembro mais uma vez que a Quaresma é Tempo propício para a Confissão, a fim de fazermos uma boa comunhão pascal. Como dizia oração da Missa de sexta-feira passada: Deus renova o mundo por meio dos sacramentos, pois a verdadeira renovação se faz pela santidade e fidelidade ao que a Igreja sempre ensinou e não por revoluções.

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Entramos hoje, caros católicos, nesse tempo particular dentro do Tempo da Quaresma: o Tempo da Paixão. É tempo oportuno para refletir bem e meditar bem a obra da nossa Redenção e o mistério dos sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a sua Paixão. Não basta, no entanto, considerar somente o fato dos sofrimentos suportados por Nosso Senhor. É preciso conhecer também as causas e os efeitos da Paixão, pois somente assim poderemos começar a ter ideia da grandeza da bondade divina e poderemos haurir uma água viva para a nossa vida espiritual.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo encontra sua origem no pecado de nossos primeiros pais. Com efeito, Nosso Senhor se encarnou para nos livrar do pecado, que entrou no mundo pela falta cometida por Adão. Nós sabemos, a gravidade de uma ofensa se mede a partir da dignidade da pessoa ofendida. Como o pecado é uma ofensa feita a Deus, infinitamente digno, o pecado é uma ofensa infinita. E isso não só para o pecado de Adão, mas também para todos os nossos pecados graves, que são, então, ofensas infinitas feitas a Deus. Ora, como nós somos seres finitos, como podemos satisfazer por nossos pecados, que são ofensas infinitas? Como podemos satisfazer, quer dizer, como podemos oferecer a Deus algo que lhe agrade mais do que a ofensa infinita lhe desagradou? Isso é, para nós, impossível. Até mesmo se oferecêssemos a Deus todas as vidas de todos os homens de todos os tempos, seria largamente insuficiente. Assim, é impossível para nós satisfazer pelo pecado. Como resolver esse problema?

Nós, na nossa sabedoria humana, teríamos pensado em um perdão gratuito e completo de Deus, que Ele poderia nos dar sem nenhuma injustiça e sem prejudicar ninguém. Todavia, nessa hipótese, a justiça divina, embora não fosse violada, não seria perfeitamente satisfeita. Além disso, com um perdão gratuito, o homem não se daria conta da gravidade de seu pecado: se Deus perdoa com tanta facilidade, o pecado não é assim tão grave, diria o homem. Podemos dizer também que esse perdão gratuito não manifestaria claramente e perfeitamente o amor de Deus pelos homens. O perdão puramente gratuito é uma solução humana.

A sabedoria divina, que dispõe perfeitamente todas as coisas, nos deu outra solução. Deus permite um mal sempre em vista de um bem superior. Dessa forma, se a sabedoria divina permitiu o pecado, que é o maior dos males, foi justamente para que ocorresse a encarnação e para que a obra da redenção se cumprisse pelo Verbo feito carne, Nosso Senhor Jesus Cristo, homem e Deus. Sendo homem e Deus, uma só ação de Nosso Senhor basta para satisfazer abundantemente a ofensa infinita do pecado. E isso pela simples razão de que a mais simples ação de Cristo é feita sempre com uma caridade, com um amor infinito por Deus. E essa caridade do Homem-Deus é infinitamente mais agradável a Deus do que todos os pecados lhe são desagradáveis. Assim, a encarnação é necessária para satisfazer plenamente a justiça divina. Um ato, então, do Menino Jesus recém-nascido teria bastado para resgatar, redimir todos os homens. A encarnação, resposta divina ao pecado, satisfaz perfeitamente a justiça divina. Mas a solução divina não se resume a isso. A solução divina compreende, além da encarnação, a paixão, os sofrimentos e a morte de Cristo.

No entanto, caros católicos, se uma única ação do Menino Jesus teria bastado para a redenção de todos os homens, por que uma paixão tão sangrenta? Estamos nós diante de um Deus sedento de vingança? Claro que não. Como dissemos, a justiça divina já está plenamente satisfeita com a mais simples ação de Cristo, homem e Deus. Se a providência divina permitiu a paixão e a morte de Nosso Senhor, há uma só razão (principal) para isso. Seu amor por nós. Como nos diz São João: Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito. E Nosso Senhor, Ele mesmo desejava com um desejo ardente a chegada de sua hora, que não é outra que a hora de sua Paixão. Mas como? Nosso Senhor quis padecer tantos sofrimentos por amor dos homens? Sim, caros católicos, o motivo principal da paixão e morte de Cristo é seu amor por nós. Por amor, Ele quis ser preso e amarrado no Jardim das Oliveiras, maltratado  na casa do sumo sacerdote, flagelado e coroado de espinhos diante de Pilatos. Ele quis carregar a Cruz, Ele quis as quedas dolorosas durante o caminho da Cruz. Por amor, Ele quis, enfim, ser destituído de todas as suas vestes, quis a crucificação com dores inauditas, a sede tremenda. Ele quis também padecer as dores interiores, mil vezes maiores que essas imensas dores exteriores: a tristeza mortal no Jardim das Oliveiras diante da visão de todos os tormentos que Ele ia sofrer, o sofrimento diante da perfídia dos judeus que teriam tantos imitadores ao longo dos séculos; a tristeza mortal face à infidelidade de seus discípulos e de tantos cristão frouxos, face aos pecados sem número cometidos até o final dos tempos, face à inutilidade de seu sangue para o mau ladrão e para tantas outras almas que não o aceitaram.

O Verbo Encarnado nos mostrou, pela sua Paixão e Morte de Cruz, a imensidade de seu amor porque uma das medidas mais seguras e exatas do amor é justamente o sofrimento que somos capazes de suportar para alcançar o bem do amigo. Ele quis nos mostrar esse amor infinito, amor capaz de sofrer todas as dores para o bem daqueles que eram ainda pecadores. E ao nos mostrar seu amor, ele queria uma só coisa, pois Cristo quer uma só coisa: que o amemos em troca. E que o amemos com todas as nossas forças, com toda a nossa alma, com todo o nosso ser, guardando os seus mandamentos. A paixão de Cristo destrói os obstáculos que se opõem à conversão da alma, em particular, ela destrói a dureza do coração que se obstina a não escutar a voz suave de Deus que o chama por meio de sua Paixão.

Da Paixão de Nosso Senhor há ainda vários outros frutos. A Paixão de Cristo e sua Cruz, de modo particular, é a cátedra mais eloquente que pode existir. O Salvador nos ensina do alto dessa cátedra pelo exemplo. Ele nos ensina a prática de todas as virtudes, sem as quais o homem não pode se salvar: obediência, humildade, paciência, justiça, constância, fidelidade à vontade de Deus, etc…

Pela Paixão de Cristo, a feiura e as gravíssimas consequências do pecado nos são mostradas claramente. Os sofrimentos, as feridas, as chagas, os opróbrios suportados por Nosso Senhor Jesus Cristo, deveriam ter sido carregados por nós, os verdadeiros culpados. Assim, à vista das graves consequências do pecado, tão graves que levam Deus a um tal sofrimento, devemos ser levados a abandonar todo e qualquer pecado.

Finalmente, a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo é a derrota mais humilhante para o demônio. O inimigo do gênero humano havia triunfado fazendo nossos primeiros pais pecarem. A morte, fruto amargo do pecado, era o troféu do demônio. Nosso Senhor destruiu a obra perniciosa do demônio e abriu para nós o céu justamente pela sua morte. Quando o demônio acreditava vencer, ele foi, na realidade, definitivamente derrotado e humilhado.

Sofrer por aquele que amamos e lhe fazer o bem. Eis as duas coisas que nos fazem conhecer um amigo, diz Cícero. Todos os sofrimentos e todos os bens que decorrem da Paixão de Cristo nos mostram a grandeza de seu amor por nós. Na Paixão de Nosso Salvador, a justiça e o amor se encontram de modo perfeito. E é o amor que vence, pois a Paixão, embora tenha por finalidade satisfazer pelo pecado, ela tem como objetivo principal mostrar aos homens o amor infinito de Deus por nós, a fim de que o amemos em troca. A Paixão era, então, a maneira mais conveniente de nos resgatar porque pela paixão nós somos levados a Deus e afastados do pecado de uma maneira admirável. Um homem não seria capaz nem de suspeitar uma resposta tão perfeita ao pecado.

Não fiquemos indiferentes, caros católicos, a um tal amor. E quando Nosso Senhor se dirige a nós, como o faz agora, não endureçamos nosso coração, mas sigamos o Salvador, guardando seus preceitos e carregando nossa cruz com verdadeira alegria. Não sejamos como os judeus do Evangelho de hoje, que não encontrando nenhuma falta em Cristo, quiseram lapidá-lo. Ao contrário, vivamos, de agora em diante, por Cristo, com Cristo, em Cristo, fazendo em tudo a sua divina vontade. Combatamos pelo triunfo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se o pecado e a morte entraram no mundo pela falta de um só homem – Adão – a graça e a vida eterna vieram também por um só homem – Jesus Cristo. Consideremos com frequência a misericórdia, a bondade, o amor infinito de Jesus Cristo por nós, e que nos foram manifestados na sua Paixão e Morte. E peçamos também a Nossa Senhora, Virgem das Dores, a graça de nos fazer herdeiros desses bens que foram adquiridos ao preço de um sangue tão caro. Foi pela nossa alma que Cristo sofreu e morreu. Foi para salvar a nossa alma.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

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[Liturgia] Tempo da Paixão

[Republicação] Texto publicado originalmente em 22 de março de 2010

Constituído de dois domingos que antecedem imediatamente a Páscoa, o Tempo da Paixão delineou-se no século VII, quando se começou a dar maior relevância ao mistério da Cruz. O segundo domingo da Paixão, ou Domingo de Ramos, primeiro dia da Semana Santa, revela o caráter quaresmal nas Orações e Leituras. Continuar lendo

[Liturgia] Tempo da Quaresma

[Republicação] Texto publicado originalmente em 18 de outubro de 2010

Exposição Dogmática

O Tempo da Septuagésima já nos demonstrou a necessidade de nos unirmos, pelo espírito de penitência, à obra redentora do Salvador. Pelo jejum e  outros exercícios de penitência, a Quaresma vai associar-nos a Ele de maneira efetiva. Mas não há Quaresma que valha, sem esforço pessoal de retificação da vida e de a viver com mais fidelidade, reparando, por qualquer privação voluntária, as negligências de outros tempos.

Paralelamente a este esforço, que exige de cada um de nós, a Igreja ergue diante de Deus a cruz de Cristo, o Cordeiro de Deus, que tomou sobre Si os pecados dos homens, e que é o verdadeiro preço da nossa Redenção. À medida que nos aproximamos da Semana Santa, o pensamento da Paixão tornar-se-á predominante, até chegar o momento de prender por completo a nossa atenção. Já desde o começo da  Quaresma, ela nos está presente, e é em união com os sofrimentos de Cristo que o exército cristão vai entregar-se à “santa quarentena”, indo ao encontro da Páscoa com a alegre certeza de partilhar da Ressurreição do Senhor.

Eis o tempo favorável, eis os dias da salvação.* A Igreja apresenta-nos a Quaresma nos mesmos termos com que a apresentava outrora aos catecúmenos e aos penitentes públicos, que se preparavam para as graças pascais do batismo e da reconciliação sacramental. Para nós, como para eles, a Quaresma deve ser um longo retiro, um treino, em que a Igreja nos exercita na prática de uma vida cristã mais perfeita. Aponta-nos o exemplo de Jesus e, através do jejum e da penitência, associa-nos aos seus sofrimentos, para nos fazer participar da Redenção.

Lembremo-nos que não estamos isolados, nem somos os únicos  em causa nesta Quaresma, que ora se empreende. É todo o mistério da Redenção que a Igreja põe em ação. Fazemos parte dum conjunto imenso, em que somos solidários de toda a humanidade, resgatada por Jesus Cristo. –A liturgia do tempo não se cansará de o recordar. Nas matinas dos domingos, as lições do Antigo Testamento, começadas na Septuagésima, continuam a lembrar, a largos traços, a historia do povo judeu, em que se consignam os desígnios de Deus acerca da salvação de todo o gênero humano o afastamento de Esaú em beneficio de Jacó (não é a linhagem terrestre, mas a escolha gratuita, agora estendida a todas as nações, que faz os eleitos); José, vendido por seus irmãos, e salvando o Egito, é Jesus salvando o mundo, depois de ser rejeitado e traído pelo seus; Moisés, que arranca o seu povo à escravidão, e o conduz à terra prometida, é Jesus que nos liberta do cativeiro do pecado e abre as portas do Céu. Os evangelhos não são menos eloqüentes: a narrativa da tentação de Jesus, mostra o Segundo Adão, novo chefe da humanidade, a contas com as astúcias de Satanás, mas esmagando-o com o seu poder  divino; a parábola do homem armado e expulso, por um mais forte, do domínio que usurpara, é ainda afirmação da vitória de Cristo.

Tal é o sentido da nossa Quaresma: um tempo de aprofundamento espiritual, em união com a Igreja inteira, que se prepara para a celebração do mistério pascal. Todos anos, a exemplo de Cristo, seu chefe, o povo cristão, num esforço renovado, retoma a luta contra a maldade, contra Satanás e o homem de pecado, que cada qual arrasta em si mesmo, para  haurir, na páscoa, um suplemento de vida, renovada nas próprias fontes da vida divina e continuar a marcha para o Céu.

Epistola do Primeiro Domingo da Quaresma

Apontamentos de Liturgia

O Tempo da Quaresma começa na Quarta-Feira de Cinzas e termina no sábado Santo. Os últimos quinze dias deste longo período constituem o Tempo da Paixão. Outrora, a Quaresma começava no primeiro domingo, mas os dias que precedem foram acrescentados para perfazer os quarenta dias de jejum. De contrário, ficaria apenas trinta e seis, visto não se jejuar aos domingos.

O jejum de quarenta dias, “inaugurado pela Lei e pelos Profetas, e consagrado pelo próprio Cristo”, foi sempre uma das práticas essenciais da Quaresma. A liturgia a ele alude constantemente, e o prefácio do Tempo recorda-o todos os dias.

Mas o jejum irá de par com a oração, como todos os exercícios penitenciais da Quaresma, é oferecido a Deus em união com o sacrifício do Salvador, diariamente renovado na Santa Missa. Cada dia da Quaresma tem missa própria, devido ao fato de outrora toda a comunidade cristã de Roma assistir diariamente à Santa Missa, durante esta quadra. Daí o indicar-se a “estação”, a Igreja em que se celebrava, nesse dia, a missa da comunidade romana.

Todas as missas feriais incluem, depois da póscomunhão, uma “oração sobre o povo”, precedido dum convite à penitência e à humildade: “Baixai vossas cabeças diante de Deus.” O caráter penitencial é acentuado pelo silêncio do órgão. Os paramentos são roxos. À 2ª, 4ª e 6ª feiras repete-se o trato da Quarta-Feira de Cinzas: “Senhor, não nos trateis conforme merecem os nossos pecados…”.

Rubricas

I. Os domingos da Quaresma são de 1ª classe. Têm sempre Missa e Vésperas. A Quarta-Feira de Cinzas e toda a Semana Santa são férias de 1ª Classe e não admitem nenhuma comemoração.

II. A comemoração da féria é privilegiada: faz-se sempre e antes de qualquer outra.

III. As férias das Quatro-Têmporas são de 2ª classe, e preferidas mesmo às festas particulares de 2ª classe; as outras férias da Quaresma são de 3ª classe e preferidas às memórias e às festas de 3ª classe.

IV. As Quatro-Têmporas da Quaresma verificam-se na primeira semana; seguem as mesmas regras das do Advento.

Texto extraído do Missal Romano Quotidiano de Dom Gaspar Lefebvre

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[Sermão] Tentações: razões, fases, modos de vencê-las

Sermão para o Primeiro Domingo da Quaresma
17 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No Santo Evangelho de hoje, vemos o demônio tentando Nosso Senhor Jesus Cristo. São Tomás diz que Nosso Senhor quis ser tentado por quatro razões.

Primeiramente, para nos auxiliar contra as tentações, isto é, para vencer as nossas tentações pelas suas, assim como venceu a nossa morte pela sua morte.

Em segundo lugar, Ele quis ser tentado para que ninguém pense que está imune das tentações, por mais santo que seja.

Terceiro, para nos dar o exemplo de como vencer as tentações.

Quarto, para que tenhamos confiança em sua misericórdia, pois temos um Salvador semelhante a nós em tudo, salvo no pecado.

É preciso ter claro, porém, que a tentação de Cristo no deserto é bem diferente da nossa. Quando somos tentados, inclinamo-nos e somos, em maior ou menor medida, atraídos ao mal e temos que combater essa inclinação, às vezes com grande dificuldade. Em Cristo, não houve nada disso, não houve qualquer conflito interno nem qualquer inclinação ao mal, por menor que seja. Para Cristo, as tentações que lemos hoje no Evangelho, eram puramente exteriores, pois do contrário haveria o início de uma desordem moral em Cristo, o que não pode ser admitido sem blasfêmia.

Convém, então, conhecermos o processo da tentação, para não confundi-la com o pecado. A tentação não é, em si, um pecado.

Nós vemos hoje, então, o demônio em seu ofício próprio, que é o de tentar, como nos diz São Tomás. Todavia, nem todas as tentações vêm do demônio. São Tiago no diz expressamente que “cada um é tentado por suas próprias concupiscências, que atraem e seduzem.” (Tiago I, 14). E também é evidente que outros homens podem nos tentar, nos incitar ao pecado pelo mau exemplo, por mau conselho, mandando, louvando o pecado, participando, ou então, não nos avisando, não impedindo, não denunciando o pecado quando podem e devem fazê-lo. A tentação pode ocorrer de dois modos distintos. O primeiro modo por persuasão interna, ou seja, pela imaginação, pela provocação de sentimentos desordenados ou de paixões desordenadas, a fim de obscurecer nosso entendimento e arrastar nossa vontade. O segundo modo é pela proposição externa do objeto desordenado que atrai nossas paixões, nosso entendimento ou nossa vontade.

Para evitar a confusão entre a tentação e o pecado, é preciso distinguir três fases na tentação.

A primeira fase da tentação é a sugestão. A sugestão é a representação do pecado na imaginação ou na inteligência. Portanto, o pecado aparece em nossa imaginação ou em nossa inteligência. Essa mera representação ou aparição involuntárias – por piores que sejam e por mais duradouras que sejam – não constituem ainda pecado, se nossa vontade não consente. Evidentemente, devemos rechaçar essa sugestão assim que percebemos a sua maldade. Se a vontade não trabalha para afastar essa sugestão, nos expomos ao subsequente consentimento. Portanto, a negligência em não afastar essa sugestão ou representação é um pecado venial, sobretudo se a tentação é forte. Se eu desejo pensar em algo ruim ou imaginar algo ruim, já temos aí, evidentemente, um pecado, pois se trata de um ato plenamente voluntário. Eis a primeira fase: a sugestão, a imaginação ou o pensamento ruim involuntários.

A segunda fase da tentação é a deleitação não deliberada ou o sentir involuntário. Com frequência, a simples sugestão involuntária de que falamos acima gera certa deleitação ou uma sensação. Também aqui não há pecado, se essa sensação não é querida, se ela não é desejada nem permitida pela vontade. Essa sensação espontânea não é um ato voluntário e não pode, então, ser um pecado. Sentir não é consentir. E o pecado está somente no consentir. Então, se, ao contrário, consentimos nessa deleitação, nessa sensação agradável que nos traz a sugestão do pecado, cometemos aí sim uma ofensa a Deus.

A terceira fase do tentação é o consentimento da vontade. Se depois da sugestão e dessa deleitação ou sensação involuntárias, a vontade rechaça ambas as coisas, não há aí pecado algum. O pecado só existe quando admitimos ou aprovamos a má sugestão ou a deleitação desordenada. O pecado só vem com o consentimento da vontade. É preciso ter bem claras essas três fases e ter em mente que o pecado só vem com o consentimento.

Muitas vezes, é difícil discernir se houve ou não consentimento. Há algumas regras para nos ajudar a saber se houve ou não consentimento. Assim, se se trata de uma pessoa de consciência reta que não costuma cair com frequência em pecado, a presunção de que não houve consentimento ou de que o consentimento foi imperfeito está a seu favor. Se se trata, ao contrário, de pessoa que tem a consciência larga e que costuma ceder com frequência às tentações, a presunção é de que houve consentimento. Se a pessoa lutou durante todo o período da tentação, rechaçando-a repetidas vezes, é provável que não tenha consentido ou ao menos que não tenha consentido plenamente. Da mesma forma, em geral, se a pessoa podia cometer facilmente um pecado externo correspondente à tentação e não o cometeu, há indícios fortes de que não houve pleno consentimento. Em caso de dúvida séria se consentimos ou não, devemos fazer um ato de contrição e nos acusar dessa falta como duvidosa na confissão.

Para vencer as tentações é preciso, igualmente, distinguir três fases.

A primeira fase antecede a tentação. Ela consiste em vigiar e orar. Nosso Senhor mesmo o diz: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca.” (Mt XXVI, 41). É preciso, portanto, ter uma vida de oração sólida, com as orações da manhã e da noite, com o Santo Terço, com jaculatórias. Recorrer a Nossa Senhora e ao Anjo da Guarda. É preciso vigiar, fugindo das ocasiões de pecado, evitando a ociosidade, combatendo o defeito dominante, mortificando os sentidos, sobretudo os olhos. Nosso Senhor nos dá o exemplo: no deserto, ele passou quarenta dias rezando, meditando e mortificando-se, sem ociosidade, sem colocar-se em ocasião de pecado, etc…

A segunda fase do combate à tentação é durante a própria tentação. É preciso resistir à tentação assim que ela surge, isto é, quando ela inda é fraca e fácil de ser vencida. Não agir logo contra a tentação, sobretudo em matéria de fé e pureza, é um pecado venial de negligência e de exposição ao pecado, pois se deixamos a imaginação ou o pensamento permanecerem, passaremos à deleitação involuntária e dessa deleitação temos um grande risco de passar ao consentimento. Nosso Senhor nos dá o exemplo. Ao contrário de Adão e Eva que pararam para pensar no que estava dizendo o demônio e terminaram consentindo, Cristo reage imediatamente, citando a Revelação. É preciso, assim, resistir à tentação seja diretamente, seja indiretamente. Resistir diretamente à tentação é fazer ou pensar o contrário daquilo que é sugerido pela tentação. Se a tentação consiste em falar mal de alguém sem necessidade, devemos procurar falar bem daquela pessoa, de suas qualidades. Se a tentação é de suprimir uma oração ou encurtá-la, devemos prolongá-la. Se a tentação é de irar-se sem causa ou de forma desproporcional, devemos agir com muita medida, etc. Resistir indiretamente consiste em não enfrentar a tentação, mas afastar-se dela, aplicando nossa imaginação e nossa inteligência em algo bom, lícito, que possa absorver nossas faculdades. Em tentações contra a fé e a castidade, devemos aplicar sempre a resistência indireta, pois nesses casos, a luta direta pode aumentar a tentação, dado o perigo e a sinuosidade da questão. Em matéria de fé e castidade, em particular, devemos aplicar as nossas faculdades, sobretudo a memória e a imaginação, a uma atividade que as absorva e devemos fazer isso rápida e energeticamente, mas também com grande serenidade e calma. Por exemplo, podemos considerar todos os Estados do país e suas capitais, como diz um autor espiritual.

A tentação pode persistir, apesar de a rechaçarmos empregando os devidos meios. Se a tentação persiste, não devemos desanimar, não devemos perder a coragem. Será necessário repetir mil vezes o repúdio à tentação com serenidade e paz, evitando cuidadosamente o nervosismo, a perturbação e certo desespero, que seriam já um início de vitória do inimigo. Nosso Senhor dá mais uma vez o exemplo: Ele reage imediatamente à tentação e com vigor, mas com serenidade e calma. Cada ato de repulsa à tentação será um mérito adquirido diante de Deus e um novo fortalecimento para a alma. A tentação contínua, quando é igualmente rechaçada continuamente, aproxima a alma de Deus. Quando as tentações são contínuas, convém manifestá-las ao confessor, pois uma tentação declarada ao confessor é uma tentação semi-vencida já. O confessor poderá também dar conselhos mais precisos para evitar as tentações e combatê-las melhor. Claro, podemos pedir a Deus que nos livre dessas tentações, como fez São Paulo, sabendo, porém, que Deus pode continuar a permiti-las, justamente, para que possamos continuar a progredir humildemente, como ele fez com o mesmo Apóstolo. No Pai Nosso, não pedimos a Deus que nos livre da tentação, pedimos a Deus que não nos deixe cair nas tentações e que nos livre do mal, que é, antes de tudo, o pecado.

A terceira fase do combate às tentações é depois delas. A alma deve agradecer a Deus humildemente, se saiu vitoriosa do combate. Deve arrepender-se imediatamente, se teve a desventura de sucumbir, e procurar a confissão, se se trata de pecado grave. A alma deve aproveitar a lição da queda para os combates futuros.

Devemos nos lembrar, caros católicos, que as tentações sempre existirão. Elas só cessarão no céu. Diz a Sagrada Escritura: “Filho, vindo para servir ao Senhor, (…) prepara a tua alma para a tentação.” Em geral, quando tomamos a decisão de servir bem a Deus, somos mais tentados. E isso é bem normal. Quando estamos distantes de Deus, caminhamos sozinhos para o mal, não precisamos ser induzidos por alguém nem provocados ao erro. Quando a pessoa está distante de Deus já são tantos os perigos e as ocasiões de queda a que ela se expõe que o demônio nem precisa tentá-la, praticamente.

Eis, então, o combate contra a tentação, tentação que não é, em si, um pecado.

Aproveito também para tratar dos chamados pecados internos, para os quais muitas pessoas dão pouca importância ou automaticamente consideram como pecado venial, desde que não haja nenhum ato externo. Ora, o pecado é essencialmente algo interno, que está na vontade. Portanto, para que haja pecado não é necessário passar ao ato externo. Basta considerarmos o nono e o décimo mandamentos: não cobiçar a mulher do próximo e não cobiçar as coisas alheias são pecados puramente internos. Assim, um pecado puramente interno tem a mesma gravidade essencial que o ato externo. Claro, o ato externo aumenta a malícia do ato interno em virtude da maior intensidade da vontade requerida para passar ao ato exterior, pela maior duração do ato interno, que se prolonga durante toda a execução exterior e pela eventual multiplicação dos atos interiores quando da execução exterior. Além disso, os atos externos podem ter outras consequências: o escândalo, a destruição dos bens do próximo e a consequente obrigação de restituir, por exemplo. Mas, essencialmente, o pecado interno tem a mesma gravidade que o ato externo, pois o ato externo é simples prolongamento do pecado interno. Por isso, Nosso Senhor diz: “todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração.” (Mt V, 28). Portanto, se o ato externo é pecado mortal, o pecado puramente interno também será, se há a plena advertência e o pleno consentimento necessários para que haja pecado grave.

Os pecados internos podem ser de três tipos.

O primeiro tipo de pecado interno chama-se deleitação morosa, que é regozijar-se na representação do pecado, como se ele estivesse sendo realizado, mas sem a intenção de realizá-lo exteriormente. Se alguém se regozija, com plena advertência e consentimento, no pensamento de assassinar outra pessoa, por exemplo, comete homicídio em seu coração, um pecado gravíssimo, por mais que não tenha a intenção de passar ao ato externo.

O segundo tipo de pecado interno é o mau desejo, que ocorre quando a pessoa tem a intenção de executar o pecado quando for possível. Ainda que não consiga executá-lo, o pecado interno já está cometido com a mesma gravidade essencial do pecado externo. Com o mesmo exemplo, alguém que tem a intenção de matar outra pessoa, mas não consegue fazê-lo por que a polícia passou na hora, cometeu homicídio em seu coração.

O terceiro e último tipo de pecado interno é a alegria pecaminosa, isto é, a alegria ou deleitação voluntárias com uma ação pecaminosa passada feita pela própria pessoa ou por outra. Aquele que, depois de ter matado alguém injustamente, se alegra de tê-lo matado, comete novamente homicídio em seu coração com a mesma gravidade essencial do homicídio propriamente dito.

Portanto, os pecados internos não são sem importância, eles não são automaticamente veniais. Os pecados internos têm a mesma gravidade essencial do ato externo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, caros católicos: Adoremos ao Senhor e sirvamos a Ele somente, combatendo as tentações e evitando todo pecado.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre as consequências da luxúria

Sermão na Festa da Aparição da Virgem Maria em Lourdes
11 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No sábado passado consideramos a bondade divina, e alguns dos benefícios que nos ela nos fez, desde a nossa criação até a honra a que nos elevou, a honra de filhos adotivos de Deus, a honra de participar da própria vida da Santíssima Trindade, indo até a morte do Verbo Encarnado da Cruz. Hoje, ao contrário, vamos considerar as consequências da luxúria, ou seja, as consequências desse pecado capital – o principal cometido durante o carnaval – que se opõe ao sexto e ao nono mandamentos.

Um pecado capital é na verdade um vício. Um pecado capital não é uma ação isolada. O pecado capital é uma disposição bem enraizada na alma para operar mal, para agir contra a razão e contra Deus. Portanto, se alguém peca uma vez contra o sexto mandamento, peca gravemente, mas não está ainda atingido pelo vício, pois um ato só não cria uma disposição bem enraizada na alma. Se a pessoa comete várias vezes os mesmos pecados, ela terá em sua alma uma disposição para cometê-los, ela terá, então, um vício. O vício ou um pecado capital não é um pecado em si, mas é uma inclinação forte para cometer certo tipo de pecado. E certos vícios são chamados de vícios capitais ou pecados capitais justamente porque são a cabeça de muitos outros pecados, gerando-os com grande facilidade. Portanto, quando pecamos, é preciso que nos corrijamos imediatamente, e se se trata de pecado grave, confessando-nos. Primeiro, para obter o perdão divino, recobrar a graça e voltar a merecer o céu. Segundo, para que não adquiramos o vício relativo a esse pecado, pois vencer um vício é, evidentemente, muito mais difícil.

O pecado ou vício capital de que tratamos hoje é o da luxúria. É o principal do carnaval. E não somente do carnaval. Hoje, infelizmente, em nossa sociedade ele é onipresente. A luxúria diz respeito à deleitação venérea desordenada. Diz respeito, portanto, à deleitação venérea desordenada – aquela que se opõe à razão, à lei natural e à lei divina – em atos, pensamentos consentidos ou olhares consentidos. Ela se refere, portanto, a essa deleitação venérea fora do matrimônio, ou dentro dele, mas contra a finalidade primária do matrimônio, que é a procriação.

Como dissemos, o pecado capital recebe esse nome justamente porque ele é a cabeça de várias outras desordens. São gravíssimas as desordens geradas pela luxúria. Para compreender como essas consequências ocorrem, é preciso ter em mente que a alma humana é una e que, portanto, quando uma de nossas faculdades se aplica com veemência a alguma coisa, as outras faculdades não podem se aplicar ao seu próprio objeto. Por isso, alguém que estuda ouvindo musica, ou ouvirá a música, ou estudará ou fará as duas coisas mal feitas, pois a alma sendo una, não pode se aplicar com veemência a duas coisas distintas. Assim, é óbvio que quando a alma está manchada com o vício da luxúria, as faculdades superiores – a inteligência e a vontade – são gravemente prejudicadas, pois as faculdades inferiores se aplicam com veemência ao seu objeto de forma contrária à razão.

Vejamos, então, as filhas da luxúria, segundo São Tomás. A primeira delas, na ordem da inteligência, é a cegueira do espírito. A alma passa a julgar as coisas não mais pela razão, e tais como elas são, mas segundo a paixão, segundo suas inclinações. Isso a impede de conhecer a verdade, ao menos plenamente ou como poderia conhecê-la. A consequência é o erro na apreciação da realidade. Daí a cegueira diante das realidades eternas e mesmo a perda do bom senso. A pessoa passa a julgar as coisas como ela quer e não como as coisas são. A pessoa já não consegue discernir o bem do mal. Por isso, o Profeta Daniel diz a um dos velhos que cobiçaram Suzana: A formosura seduziu-te e a concupiscência perverteu-te o coração.

A segunda filha da luxúria é a precipitação. A precipitação consiste em agir segundo o ímpeto da vontade ou da paixão, e não sob a direção da razão que busca agir somente após a devida consideração, reflexão e ponderação, considerando a realidade das coisas, considerando a própria experiência, a experiência dos antigos, o ensinamento dos outros, etc. A precipitação despreza tudo isso para agir sob o ímpeto da paixão ou da vontade. O homem precipita a sua ação antes de considerar todas essas coisas.

A terceira filha da luxúria é a inconsideração, pela qual a pessoa não consegue julgar corretamente os meios que deve empregar para agir bem.

A quarta filha da luxúria é a inconstância. Apegada às deleitações desordenadas, a alma pode até chegar a reconhecer o que é bom, ela considera o que deve fazer e se propõe a fazê-lo, mas não passa à ação, impedida pelo ímpeto da concupiscência desordenada, que lhe tira o vigor para agir bem.

A quinta filha da luxúria, agora na ordem da vontade, é o amor desordenado de si mesmo, pois a deleitação irracional da luxúria é um egoísmo. A pessoa se opõe a Deus, se opõe ao próximo, se opõe à sociedade, para ter uma satisfação instantânea.

A sexta filha é o ódio a Deus, por oposição ao amor desordenado de si. A pessoa quer tanto cometer esses pecados que ela passa a odiar Deus, que a proíbe de fazer tais coisas.

A sétima filha é o apego à vida presente, na qual a pessoa quer permanecer a todo custo para continuar com suas deleitações desordenadas.

A oitava filha, por oposição, ao apego à vida presente é o desespero com relação à vida futura, pois a pessoa afetada demasiadamente pelas deleitações carnais desordenadas não cuida das coisas espirituais, mas se aborrece com elas e desespera de sua salvação.

Poderíamos, ainda, citar outras filhas da luxúria que São Tomás não cita. Poderíamos citar a efeminização da sociedade, no sentido técnico da palavra, que significa o fato de seguir as suas paixões sem combatê-las, formando nas pessoas um caráter fraco, e nos homens um caráter sem virilidade alguma, pois é preciso ter em mente que a virilidade do homem consiste justamente no combate às paixões desordenadas, em particular no combate à luxúria. O homem verdadeiramente viril é um homem casto. O homem que não é casto, por mais que não seja homossexual é efeminado, no sentido em que dissemos. A luxúria gera também o assassinato: o aborto. E leva à eutanásia. Se a pessoa já não pode gozar a vida, melhor que morra. A luxúria bestializa o homem.

Podemos ver, então, porque a luxúria é um pecado capital. Nós vemos hoje onipresentes todas as filhas da luxúria em nossa sociedade. A cegueira da mente, pela perda do bom senso de nossos contemporâneos, pela perda do julgamento do que é certo e do que é errado, a disseminação do erro em todas as esferas. A falta total de reflexão de nossos contemporâneos, que agem por ímpeto, por paixão, por sentimento, sem pensar na sabedoria dos antigos, sem pensar, em particular, naquilo que a Igreja e os Santos ensinam. Podemos ver também que quando alguém chega a refletir, não consegue levar em conta os verdadeiros elementos, em particular a vida sobrenatural, e não consegue fazer um juízo correto de como deve agir. Vemos a falta de determinação das pessoas em suas decisões, a sua falta de constância em fazer o verdadeiro bem e perseverar neles. Vemos também o egoísmo reinante e vemos o ódio crescente a Deus e a sua Igreja, que combate justamente contra esse vício. Muitas das leis iníquas, opostas à lei de Deus e sua Igreja têm sua origem próxima nesse vício. Vemos, claramente, o apego à vida presente e a onipresente necessidade de curtir a vida e o aborrecimento total para com as coisas do alto. Vemos o desespero reinante em nossa sociedade, que tenta a todo custo prolongar ao máximo a vida dos homens aqui na terra, esquecendo que nossa pátria é o céu.

Alguém que possui o pecado capital da luxúria deve combatê-lo. Antes de tudo, rezando bastante, tendo uma vida de oração. É preciso rezar quando vêm a tentação, as imaginações ruins, os pensamentos ruins. É preciso, nesse momento, desviar o pensamento para outra coisa boa, lícita, se possível santa, que possa ocupar inteiramente nossa imaginação e nosso pensamento. Em seguida, é preciso evitar as ocasiões de pecado, as situações, os ambientes, as pessoas que levam a cometer tais pecados. Em particular, é preciso ter extremo cuidado com os meios de comunicação modernos: internet, televisão. Só se deve acessar internet quando há um objetivo bem definido e deve-se sair quando o atingimos. Ficar navegando à toa e sem rumo dificilmente acaba bem. É preciso mortificar-se, mesmo em coisas lícitas, pois isso facilitará muito evitar coisas ilícitas. É preciso mortificar os sentidos, sobretudo os olhos, tentando mantê-los abaixados quando saímos de casa e evitando a curiosidade, evitando ver tudo o que acontece ao nosso redor. Devemos ser moderados e mortificar-nos na comida e no beber. O comer pertence, como a deleitação venérea, ao apetite concupiscível, de forma que a desordem em um provoca a desordem no outro, enquanto a virtude em um favorece a virtude no outro. É preciso fazer atos de fé, de esperança e de caridade. Aquele que tem esse vício não deve desesperar, mas deve empregar todos esses meios com verdadeira determinação. É preciso frequentar com assiduidade os sacramentos da comunhão e da penitência para evitar as quedas futuras. Se por fraqueza cair, é preciso buscar se confessar o mais rápido possível, com verdadeira contrição, bem entendido. É preciso considerar as consequências desse pecado: a perda do céu, o merecimento do inferno, a ofensa infinita a Deus. Tudo isso por um instante de satisfação.  Nessa matéria, o ser humano é muito fraco. Se ele confia demais em si mesmo, terminará caindo. É preciso desconfiar de si mesmo, sobretudo nessa matéria, empregando os meios mencionados e confiando muito em Deus, rezando bastante. E, claro, é indispensável uma terna devoção a Nossa Senhora.

São graves as consequências da luxúria. Uma sociedade, como a nossa, em que a luxúria é rainha e que favorece sobremaneira a luxúria está destinada à ruina. Nenhuma sociedade pode se sustentar quando está fundada no erro, na precipitação, na inconsideração, na inconstância, no amor a si mesma, no ódio a Deus, no apego à vida presente e no desespero das coisas do alto. Para chegarmos a uma sociedade inimiga de Deus, bastou ao demônio favorecer a luxúria.

Portanto, o carnaval destrói a sociedade. Uma sociedade que passa o ano inteiro se preparando para o Carnaval é uma sociedade arruinada. Um carnaval constante como, na verdade, vivemos em nosso país e no mundo todo é a destruição de nossa sociedade. Uma sociedade fundada na areia não pode subsistir. Peçamos a Deus que tenha piedade de nós e de nosso Brasil, para que nosso país volte a cumprir as promessas de seu batismo, feitas quando da vinda dos missionários portugueses. Que nosso Brasil volte a ser a Terra de Santa Cruz. Rezemos à Nossa Senhora de Lourdes, que festejamos hoje e à Nossa Senhora Aparecida.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] Programa para a Quaresma: a Cruz, a caridade, a oração e a batalha contra o defeito dominante

Sermão para o Domingo da Quinquagésima
10 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“Se não tiver a caridade, nada sou.” (I Cor, 13)

Três dias somente nos separam do começo da Quaresma. A Santa Igreja continua a nos preparar e a nos dispor, pela Sagrada Liturgia, a uma Quaresma que possa o dar frutos eternos. Para tanto, a Igreja nos apresenta o sublime elogio da caridade na Epístola de São Paulo e nos apresenta, no Evangelho, o anúncio da paixão e a cura de um cego. Mas como essas três coisas nos preparam de maneira perfeita para a Quaresma, pois não parece haver muita relação entre elas?

Para compreender o que a Igreja quer nos ensinar, devemos, antes de tudo, considerar bem a finalidade da Quaresma. A quaresma são quarenta dias de conversão, quarenta dias para que possamos morrer ao pecado com Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de ressuscitar com Ele para a vida da graça. Para fazer isso, precisamos da penitência, pela qual, com verdadeira dor e detestação de nossos pecados, satisfazemos pela ofensa feita a Deus. Todavia, a penitência sozinha não serve para nada, se ela não é inspirada pela caridade, quer dizer, ela não serve para nada se ela não é feita em união com Deus ou tendo em vista essa união com Deus, essa amizade com Deus. E isso porque a melhor das ações não tem valor algum para a salvação, se ela não é acompanhada da caridade ou se ela não tem por fim a caridade. Além disso, como somos fracos e inconstantes e sem Deus nada podemos fazer, devemos pedir a Deus, pela oração, que nossas penitências acompanhadas da caridade sejam agradáveis aos seus olhos.

Dessa forma, podemos compreender porque a Igreja escolheu estas passagens da Sagrada Escritura para o Domingo que precede a quaresma. A Igreja anuncia a Cruz, para que satisfaçamos pelos nossos inumeráveis pecados. Ela faz o elogio da caridade porque sem a caridade nada tem valor, dado que só a caridade ordena tudo a Deus. E, finalmente, ela nos apresenta a cura do cego, na qual encontramos um modelo de oração: “Filho de David, tende piedade de mim.” Assim, não podemos fazer uma penitência sincera sem ter por finalidade a união com Deus. E, ao mesmo tempo, não podemos estar verdadeiramente unidos a Deus se recusamos carregar a nossa própria cruz, quer dizer, se recusamos fazer penitência. A cruz e a caridade são inseparáveis nessa Terra. Todavia, nem a caridade nem a cruz podem existir sem a oração, pois sem Deus nada podemos fazer. É preciso fazer penitência não para se orgulhar, não para se mostrar aos outros, mas para recobrar ou aumentar a nossa amizade com Deus, pedindo-lhe, pela oração, essa amizade. Durante a Quaresma, a união da penitência, da oração e da caridade é indispensável. Uma Quaresma sem um desses três elementos seria uma Quaresma infrutífera, que não conduziria a uma união profunda e duradoura com Deus, união que é, justamente, o objetivo da Quaresma. É por isso que, tradicionalmente, recomendam-se esforços nesses três frontes durante a Quaresma: penitência (privar-se de algo que gosta, por exemplo), oração (determinar dias de visita ao Santíssimo, rezar um terço a mais, ou outra devoção) e obras de caridade (como, por exemplo, esmolas ou as obras de misericórdia corporais e espirituais).

Gostaria, porém, de dar um exemplo e uma sugestão, caros católicos, de resolução para essa Quaresma. Exemplo e sugestão de uma resolução que une muito bem esses três elementos de que acabamos de falar. Trata-se do combate de cada um contra seu defeito dominante.

O demônio, inimigo do homem, é como um leão que ruge ao nosso redor, procurando nos devorar. Com muita inteligência, ele busca, precisamente, nos atacar em nosso ponto fraco. Assim, ele faz a ronda para examinar todas as nossas virtudes teologais, cardeais e morais, e é no ponto em que nos encontra mais fraco, é nesse ponto, que é o mais perigoso para a nossa salvação, que ele nos ataca e tenta nos abater. Como um bom chefe de guerra, ele sabe que uma vez tomado o ponto mais fraco de nossa alma, o menos virtuoso, ele vai se tornar o mestre de todo o resto de nossa alma. Esse ponto mais desprovido de virtude, o mais arruinado pelas nossas más inclinações é justamente o nosso defeito dominante, que é também a raiz, a causa de muitos outros pecados. Esse defeito dominante pode ser muito diverso segundo cada pessoa: o orgulho, a vaidade, a sensualidade, a impureza, a falta de modéstia, o respeito humano, o apego aos bens desse mundo, o apego às honras ou à glória desse mundo. Ele pode ser a preguiça, sobretudo a preguiça espiritual, a falta de espírito sobrenatural, a falta de esperança, a inconstância, o espírito mundano, a cólera, etc…

É fácil ver a importância de combater nosso defeito dominante e isso por duas razões principais. Primeiramente, porque é do defeito dominante que nos vêm os maiores perigos para a nossa alma e as mais graves ocasiões de pecado. Como dissemos, ele é a raiz para vários outros pecados. Segundo, podemos ver a importância de combater o defeito dominante pelo fato de que, uma vez vencido o inimigo mais terrível, os inimigos mais fracos serão facilmente derrotados por nossa alma, que se tornou mais forte em razão da primeira vitória. Devemos agir como o Rei da Síria na guerra contra Israel. Esse Rei ordenou aos seus soldados que combatessem unicamente contra o Rei de Israel, prometendo que a morte do Rei inimigo daria uma vitória fácil sobre o resto do exército israelita. Foi exatamente o que aconteceu: tendo morrido o rei de Israel, todo o exército cedeu e a guerra terminou imediatamente. De maneira semelhante, caros católicos, será muito mais fácil vencer nossos outros defeitos quando tivermos vencido o nosso defeito dominante.

Para que sejamos vitoriosos nesse combate, é preciso, todavia, seguir o conselho da Igreja. A vitória sobre o nosso defeito dominante não ocorre sem os sofrimentos, sem as cruzes, sem as privações. É impossível vencê-lo sem a mortificação, sem a penitência. Do mesmo modo, sem a oração – sem muita oração – é igualmente impossível vencê-lo e até mesmo começar a batalha, pois é Deus que nos dá a força para combater e é Deus que nos dá, em última instância, a vitória. Sem Ele, mais uma vez, nada podemos fazer. Finalmente, é a caridade, a vontade de servir Deus, infinitamente bom e amável, que deve nos animar e nos dispor ao combate. São a cruz e a oração simples – mas eficaz – do cego que nos são lembradas pelo Evangelho. É a caridade – absolutamente necessária – que nos lembra São Paulo no sublime elogio da caridade. Mas para não se enganar a respeito de seu próprio defeito dominante, é necessário pedir o auxílio de Deus, para que Ele mostre qual é esse defeito e convém pedir conselho a um padre bom que conheça sua alma.

Se, caros católicos, conseguirmos vencer ou ao menos começar uma batalha séria contra nosso vício dominante – porque às vezes é preciso muito tempo para vencê-lo, como foi o caso, por exemplo de São Francisco de Sales com a ira – o caminho da santidade estará bem traçado, pois dessa forma cortamos o mal pela raiz, cortamos o mal em sua causa e evitamos todos os frutos ruins, que são os pecados. Com essa má árvore cortada, poderemos praticar com facilidade e alegria a virtude e o bem, avançando no caminho da perfeição.

Em todo caso, caros católicos, durante a Quaresma, não esqueçam nem um só desses três elementos: a penitência, a oração e a caridade. Com eles teremos uma Quaresma com frutos abundantes e duradouros porque teremos avançado em direção à vida eterna, satisfazendo por nossos pecados e nos dispondo à graça. Sem esses elementos, nossa Quaresma até poderá produzir alguns frutos, mas eles permanecerão superficiais e passageiros. Portanto: a cruz, a oração, a caridade. Isso é o resumo do Evangelho, o resumo da vida de Nossa Senhor Jesus Cristo. Deve ser também o resumo de nossas vidas.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre a Bondade Divina

Sermão para a Festa de São Cirilo de Jerusalém
09 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“O homem, tendo sido honrado por Deus, não compreendeu e comparou-se aos asnos tolos e fez-se semelhante a eles.” (Salmo 48, texto da vulgata)

Nestes dias de carnaval, nestes dias em que a bondade do Sagrado Coração de Jesus, em que a sua solicitude para conosco, em que a seu amor infinito é desprezado, nós temos o dever de buscar consolar o Sagrado Coração de Jesus, reparando pelas abominações cometidas nesses dias e também pelos nossos próprios pecados. É nosso dever fazer companhia ao Sagrado Coração de Jesus, vigiando com Ele, sofrendo com Ele, rezando com Ele. Se para muitos – muitos inclusive que dizem professar a religião católica – esses são dias de pecado, de atos viciosos, de desprezo ao amor divino e de ofensa à bondade e à majestade divinas. Se muitos zombam, nesses dias, de Deus e de sua misericórdia, e se muitos amam as coisas desse mundo – em particular a impureza – até o desprezo de Deus, para nós, ao contrário, esses dias são dias de graça, dias de misericórdia. São dias que Deus nos concede para satisfazer pelas nossas próprias faltas e pelos dos outros. São dias em que, acompanhando o Sagrado Coração de Jesus, traído pelos homens, coroado de espinhos, flagelado, crucificado e transpassado pela lança, devemos buscar formar com Nosso Senhor Jesus Cristo, um só coração. Um coração que deseje as mesmas coisas que Ele e que rejeite as mesmas coisas que Ele.

Só podemos avaliar com clareza as dimensões dos crimes que se cometem durante o carnaval, só podemos ter uma pálida noção da maldade dos homens nesses dias, só podemos ter uma pálida idéia da intensidade e da malícia das ofensas feitas a Deus nesses dias, se compreendemos a intensidade e a bondade do Sagrado Coração de Jesus, se compreendemos o fogo imenso da caridade que arde em seu Coração. Os profetas do Antigo Testamento, com frequência agiam assim, a fim de amolecer os corações endurecidos dos homens: por um lado, eles lembravam aos homens todos os benefícios divinos feitos ao povo de Israel e, por outro, ameaçavam com os devidos castigos, em particular com o inferno. Trataremos hoje, nessa primeira Missa e nessa primeira Bênção do Santíssimo, com intenção reparadora pelos pecados cometidos durante o carnaval, de considerar a bondade divina, todo o bem que Deus nos fez gratuitamente, por pura liberalidade, pois não temos direito a tantos e tantos benefícios.

O primeiro benefício que Deus nos fez foi evidentemente nos criar. Com frequência nos esquecemos disso. Não tínhamos nenhum direito à existência, não tínhamos nenhum direito, se posso dizer assim, a passar do nada para vida. E Deus não só nos dá a vida como nos conserva no ser a cada instante de nossa existência. Nesse exato momento, só estamos aqui porque Deus pensa em nós e quer que existamos. E Deus não nos deu qualquer ser. Deus nos deu uma um corpo e uma alma racional. Deus nos deu a inteligência e a vontade, para conhecer a verdade e amá-la. Para conhecer a verdade, quer dizer, para conhecê-lo, pois é ele a Verdade e para amar essa verdade. Só com isso, nossa honra já é grande.  Mas o amor divino não se contentou com isso. O Amor divino nos elevou à vida sobrenatural, Deus quis que participássemos de sua própria vida, Deus quis nos fazer semelhante a Ele. E o que Deus recebeu em troca? A ofensa, a ingratidão, a indiferença, a zombaria. O homem foi elevado a uma alta honra, mas não compreendeu e preferiu agir segundo a sua própria vontade, seguindo suas paixões desordenadas. O homem foi elevado à participação na vida divina, mas recusou tal participação e amou as criaturas até o desprezo de Deus.

Tendo cometido uma ofensa infinita, o homem estava condenando a viver separado de Deus. O amor divino, porém, desejando ardentemente nosso bem, resolveu vir ao mundo para nos salvar. E toda a história da humanidade se resume a isso: à preparação para a encarnação do Verbo, a vida do Verbo nessa Terra e as consequências da vida do Verbo entre os homens, em particular as consequências de seu sacrifício na Cruz. O amor de Deus para com os homens é tanto que Ele não poupou o seu próprio Filho. Deus assim amou os homens, ao ponto e lhes dar seu próprio Filho, para que possam se salvar. Vejamos a bondade divina.

No Antigo Testamento, Deus lembra aos israelitas todos os seus benefícios ao longo da história deles, a fim de suscitar em seus corações, a gratidão e a caridade. Em terras do Egito, ele fez grandes prodígios. O mar foi dividido para lhes dar passagem. De dia, ele os conduziu por trás de uma nuvem, e à noite ao clarão de uma flama. Rochedos foram fendidos por ele no deserto, com torrentes de água os saciou. Da pedra fizera jorrar regatos, e manar água como rios. Ele ordenou às nuvens do alto, e abriu as portas do céu. Fez chover o maná para saciá-los, deu-lhes o trigo do céu. Pôde o homem comer o pão dos fortes, e lhes mandou víveres em abundância. Fez chover carnes, então, como poeira, numerosas aves como as areias do mar, as quais caíram em seus acampamentos, ao redor de suas tendas. Delas comeram até se fartarem, e satisfazerem os seus desejos. Malgrado tudo isso, persistiram em pecar, não se deixaram persuadir por seus prodígios. Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram! Esqueceram a obra de suas mãos, no dia em que os livrou do adversário, quando operou seus prodígios no Egito e maravilhas nas planícies de Tânis; quando converteu seus rios em sangue, a fim de impedi-los de beber de suas águas; quando enviou moscas para os devorar e rãs que os infestaram; quando entregou suas colheitas aos pulgões, e aos gafanhotos o fruto de seu trabalho; quando arrasou suas vinhas com o granizo, e suas figueiras com a geada; quando extinguiu seu gado com saraivadas, e seus rebanhos pelos raios; quando descarregou o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, um esquadrão de anjos da desgraça. Matou os primogênitos no Egito, enquanto retirou seu povo como ovelhas, e o fez atravessar o deserto como rebanho. Conduziu-o com firmeza sem nada ter que temer, enquanto aos inimigos os submergiu no mar. Ele os levou para uma terra santa, até os montes que sua destra conquistou. Ele expulsou nações diante deles, distribuiu-lhes as terras como herança, fez habitar em suas tendas as tribos de Israel.

E diante de tantos benefícios – só citamos alguns – o que fizeram os judeus? Eles esqueceram as obras de Deuss, e as maravilhas operadas ante seus olhos. Entretanto, continuaram a pecar contra ele, e a se revoltar contra o Altíssimo no deserto. Provocaram o Senhor em seus corações, reclamando iguarias de suas preferências. Tentaram a Deus e provocaram o Altíssimo, e não observaram os seus preceitos. Deus fez tudo por eles. Eles nada fizeram por Deus.

Ora, se Deus reclama e pune a ingratidão dos judeus, diante desses benefícios, quanto maior será a dor do Sagrado Coração diante de nossos pecados e diante de nossa ingratidão, pois os benefícios que nos foram dados pelo Sagrado Coração são infinitamente superiores aos dados ao povo eleito. O Verbo veio ao mundo, padeceu desde o primeiro momento de sua encarnação e de seu nascimento. Fugiu para o Egito, levou trinta anos de uma vida humilde e escondida nos mais árduos trabalhos. Padeceu fome e sede, não tinha onde repousar a cabeça. Foi flagelado, foi cuspido e zombado. Foi coroado de espinhos, carregou sua caiu por terra três vezes. Foi crucificado, morto. Teve o Coração transpassado cruelmente por uma lança. Foi sepultado. Foi rejeitado por aqueles que ele veio salvar. Ensinou-nos toda a Verdade, fundou a Igreja, institui os sacramentos. Desce todo dia sobre os altares em Corpo, Alma, Sangue e Divindade para se entregar a nós. Perdoa nossos pecados na confissão. Deu-nos Nossa Senhora por mãe. E fez tudo isso, apesar de sermos pecadores. Que grandeza da caridade divina. E nós? Nós fomos elevados a uma sublime honra, a ponto do homem-Deus sofrer para nos salvar e nós não entendemos e preferimos nos assemelhar aos asnos tolos, pois quando pecamos nos assemelhamos aos animais, que não pensam e são incapazes de reconhecer a lei natural e a lei divina. Preferimos não seguir as leis de Deus, para seguir nossas irracionalidades, para nos tornar como os animais.

É exatamente o que ocorre de forma mais intensa no carnaval. O homem não entende a honra à qual foi elevado e se faz semelhante aos animais, pelos pecados, sobretudo pelos pecados de impureza, que de fato rebaixam o homem ao estado de animal. O homem prefere uma satisfação instantânea à vida eterna. O homem prefere perder o céu e dirigir-se ao inferno a agir conforme as leis divinas, conforme as leis naturais, conforme, portanto, àquilo que é o melhor para ele conforme com sua natureza racional. O homem prefere um instante ou uma vida passageira de prazeres e diversões desordenadas à vida eterna, à felicidade perfeita, à contemplação da verdade. O homem prefere flagelar novamente Nosso Senhor, coroá-lo de espinhos, flagel-alo, cuspir sobre o crucificado. O homem prefere aumentar o peso da cruz de Cristo. Prefere derrubá-lo e renovar a dor de todas as suas chagas, abertas para nos salvar. Ele prefere crucificar seu divino Salvador, ele prefere abrir o lado do Verbo encarnado e feri-lo diretamente em seu Sagrado Coração.

Esse Sagrado Coração continua sendo fonte de misercórdia e de caridade. E ele o será até o final da vida de cada homem. Mas um dia essa vida acaba e não sabemos quando, e se seguirá o juízo. E se o homem não se arrependeu sinceramente de seus crimes, o juízo será de condenação, pois ninguém zomba de Deus impunemente. Essas satisfações instantâneas e esses prazeres desordenados e irracionais, que assemelham o homem aos animais brutos se transformarão em sofrimento eterno. E serão condenados pelo amor divino, ou melhor, pela recusa do amor divino. Não poderão recorrer a esse amor, porque foram condenados justamente porque o recusaram.

Tantos benefícios divinos e tantos desprezos. Tanto amor e tanta indiferença. Tanta bondade e tanta malícia. Aproveitemos esses dias para acompanhar o Sagrado Coração de Jesus em seus sofrimentos, em sua agonia, em seu Coração ferido pela lança afiada dos pecados do carnaval. Acompanhemos Nosso Senhor com práticas de devoção, com mortificações, por menores e simples que sejam. Só a vinda a essa Missa nesses dias já é, talvez, para muitos um ato de generosidade. Devemos fazer um esforço. Alguns se dedicam tanto ao mal que passam dias sem dormir para cometer iniquidades. Dediquemo-nos um pouco ao bem, a Deus, ao Sagrado Coração de Jesus. Acompanhemos Nosso Senhor Jesus Cristo para que nosso coração possa formar com o dEle um só Coração, no sentido de amarmos Deus e o próximo, e a virtude e de detestarmos, o pecado, o vício e tudo o que conduz ao pecado. Não fiquemos indiferentes diante de tantos benefícios e de tanta caridade. Não fiquemos indiferentes diante dos sofrimentos do Sagrado Coração. Fomos elevados a uma honra sublime, a honra de filhos adotivos de Deus. Devemos compreendê-la e agir segundo essa filiação. É essa a nossa honra, a nossa glória, a nossa finalidade nesse mundo e a nossa alegria. Devemos nos fazer semelhantes não aos animais brutos, mas a Deus, nosso Pai.

Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao voso.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] “A Parábola do Semeador” ou “Os deveres do sacerdote e dos fiéis”

Sermão para o Domingo da Sexagésima
03 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

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“Saiu o semeador a semear a sua semente (…) e uma parte caiu em terra boa e, depois de nascer, deu fruto, a cem por um.”

No Domingo da Sexagésima temos a bem conhecida parábola do semeador e dos diferentes terrenos em que cai a semente. O semeador é, antes de tudo, Deus, e a semente é a sua Divina Palavra. Mas o semeador é também os sacerdotes, encarregados por Deu de ensinar todas as nações. Os diferentes terrenos são as almas diversamente dispostas a receber a pregação da Palavra Divina. No Domingo da Sexagésima, a Igreja continua a querer nos dispor para uma boa quaresma, para uma quaresma que dê frutos a cem por um. Para nos dispor todos a uma boa Quaresma, que possa realizar em nós uma profunda conversão, a Igreja lembra ao semeador o seu dever de pregar e lembra às almas o dever de serem uma terra boa.

[Os deveres do sacerdote]

O bom semeador deve, em primeiro lugar, pregar a Palavra de Deus e não a sua própria. É necessária fidelidade extrema ao que ensina a Igreja, ele deve transmitir aquilo que recebeu, sem corrupção, sem emenda. Um sacerdote que prega outra coisa que a doutrina de Cristo, prega ventania e colherá tempestade. É o que vemos hoje. Prega-se muita ventania e colhe-se tempestade e não uma primavera, como querem muitos. Diz o Livro dos Provérbios (XXX, 6) “não acrescentes nada às palavras de Deus para não serdes por isso repreendido e achado mentiroso”. O sacerdote deve ter verdadeira pureza de intenção: seu fim tem que ser dar testemunho da verdade, para que todos tenham vida. Não deve buscar fins menos honestos como o renome, os elogios, a glória desse mundo. O sacerdote, além disso, deve ter uma vida de oração profunda e deve pregar também com o exemplo. O exemplo é indispensável. Uma pregação que é contrariada por um mau exemplo será quase sempre vã. O sacerdote deve praticar penitências, a fim de que seus ouvintes se disponham bem.  O sacerdote, evidentemente, deve ter uma ciência adequada e uma caridade ardente, pois só pode acender aquele que arde, como dizia São Francisco de Sales. A eloquência do sacerdote é a sua caridade.

Ademais, o Sacerdote deve ter em mente que sua missão é ensinar e não agradar aos ouvintes. O pregador deve, então, perguntar-se com São Paulo: “é o favor dos homens que eu procuro ou o de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse aos homens, não seria servo de Cristo.” O Apóstolo diz também: “prega a Palavra, insiste a tempo e fora de tempo, repreende, suplica, admoesta com toda paciência e doutrina, porque virá tempo em que muitos não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos”. O semeador não deve temer as perseguições por ensinar a verdade divina, nem deve temer os sofrimentos e privações. São Paulo lhe dá o exemplo na Epístola de hoje: cárceres, açoites sem medida; muitas vezes viu a morte de perto; cinco vezes recebeu dos judeus os quarenta açoites menos um; três vezes foi flagelado com varas; uma vez apedrejado; três vezes naufragou, uma noite e um dia passou no abismo; viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de seus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! Não é pouca coisa o que sofreu São Paulo para pregar o Evangelho.

Somente tendo isso em mente o pregador cumprirá devidamente o mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo: Ide e ensinai todos os povos. Pregai o Evangelho a toda a criatura. Se o pregador insiste a tempo e fora de tempo, repreende, suplica, admoesta com toda paciência e doutrina, muitas vezes de forma inconveniente, ele cumpre simplesmente seu dever. O pregador insiste e desagrada muitas vezes porque tem de salvar a sua alma, o que se faz unicamente pela pregação da verdade revelada.

O pregador deve lembrar-se de que não tem que prestar contas aos homens, mas a Deus. Os fiéis poderão, talvez, dizer que não ouviram a Palavra de Deus, mas o sacerdote não terá desculpa por não tê-la pregado. A Quaresma se aproxima e, nesse tempo, o sacerdote deve cumprir ainda melhor a missão que lhe foi dada pela Igreja: levar as almas ao amor a Deus e à detestação do pecado.

[Os deveres dos fiéis]

Se ao sacerdote cabe o grave dever de anunciar a Palavra de Deus e de anunciá-la continuamente, sem mescla de erro, mas com fortaleza, prudência e ciência, aos fiéis cabe ouvir essa Palavra. E não só ouvi-la, mas colocá-la em prática. Nosso Senhor o diz: “Bem-aventurados aqueles que ouvem a minha Palavra e a põem em prática” (Luc XI, 28). E o Salmista diz: “hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Sal XCIV, 8). E, finalmente, São João: “Quem é de Deus escuta as palavras de Deus” (Jo XIV, 24). Para ouvir a Palavra de Deus com fruto é preciso dispôr a alma pelo desejo de ouvi-la, pelo desejo de deixar o pecado, pela oração. Para ouvir a Palavra de Deus com fruto é preciso remover os obstáculos: é preciso sair do caminho aberto, é preciso remover as pedras e os espinhos. O caminho aberto é a alma que não se protege, não cerca o terreno. O caminho aberto é a alma em que qualquer coisa pode transitar. É a alma preguiçosa, que não reza e que não foge das ocasiões de pecado. Pode ser também a alma endurecida pelo pecado. O demônio a faz esquecer rapidamente a Palavra de Deus.  O pedregulho são as almas inconstantes. Recebem a doutrina com gosto e alegria, apreciam sua beleza e sua santidade, mas não tomaram a firme decisão de converter-se completamente e permanecem superficiais. Quando chegam as dificuldades, as tentações e as provações, voltam atrás. Os espinhos são as preocupações imoderadas da vida, os prazeres mundanos, o apego aos bens desse mundo. A alma cercada de espinhos recebe a Palavra de Deus, mas logo a esquece e a abandona, preocupada desordenadamente com as coisas desse mundo.

É preciso, caros católicos, ouvir a Palavra de Deus com docilidade e colocá-la em prática. Da fidelidade e da prontidão em recebê-la e em tomá-la por regra depende a nossa salvação. Como diz Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha Palavra… tem a vida eterna e não incorre no juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo V, 24).

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

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Nota do Editor: os subtítulos foram acrescentados por nós e não pertencem ao texto original do padre.

[Sermão] A Ociosidade e a Preguiça Espiritual

Sermão para o Domingo da Septuagésima
27 de janeiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Gostaria de fazer um breve comentário sobre o tempo da Septuagésima, antes de passar ao Evangelho. Caros católicos, entramos hoje no tempo da Septuagésima, que compreende os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima, precedendo a Quaresma. O ano litúrgico começou com o Advento, depois passamos pelo tempo do Natal, que se estende até o dia 13 de janeiro, antiga oitava da Epifania. Em seguida, vem o tempo depois da Epifania, que pode ser mais ou menos longo em função da data da Páscoa. A brevidade do tempo depois da Epifania será recompensada no final do ano litúrgico, em que alguns dos domingos depois da Epifania omitidos no início do ano são retomados, como vimos em novembro. A septuagésima manifesta a bondade da Igreja para com os homens e sua sabedoria. Esse tempo litúrgico que começamos hoje é a transição para a quaresma, a fim de que a passagem para as austeridades não se faça de forma brusca, mas de modo calmo e sereno. São, portanto, duas semanas e meia para que possamos nos dispor bem para o tempo da quaresma. Essa transição está bem marcada na liturgia tradicional, sempre mestra de espiritualidade e doutrina. Assim, os paramentos são da cor roxa, cor penitencial. O Gloria já não é mais cantado, o Alleluia também não. Por outro lado, o órgão ainda é permitido, as flores também são permitidas (embora não as tenhamos hoje). Trata-se, portanto, de preparar, desde já, nosso espírito para a prática mais perfeita e intensa da penitência, da oração e das boas obras que devemos fazer na Quaresma. É o que veremos no Evangelho de hoje que nos prepara para a quaresma ao nos prevenir contra a ociosidade e o mau emprego de nosso tempo.

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Por que estais aqui todo o dia ociosos? … Ide vós também para a minha vinha.

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