[Sermão] As três ressurreições e os três tipos de morte da alma

Sermão para o 15º Domingo depois de Pentecostes
1º de setembro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

ÁUDIO: Sermão para o 15º Domingo depois de Pentecostes Viúva de Naim Três Ressurreições e três mortes da alma 1.09.2013

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…

“Jovem eu te digo: levanta-te.”

São Lucas é o único Evangelista a narrar essa ressurreição, a ressurreição do único filho de uma viúva de uma cidade chamada Naim. Uma grande multidão seguia Nosso Senhor em virtude da belíssima doutrina que Ele ensinava – o sermão da montanha ainda estava impresso nas almas – e em virtude dos milagres que ele operava para confirmar a origem divina da sua doutrina, fazendo ao mesmo tempo um grande bem ao povo com esses milagres. Além dessa grande multidão que seguia Cristo, havia também uma grande quantidade de pessoas que seguia, por compaixão pela pobre mãe viúva, o cortejo fúnebre desse jovem. São Lucas nos diz ainda que o milagre ocorreu próximo da porta da cidade. Ora, na porta das cidades dos judeus havia grande quantidade de pessoas também, pois era nas portas que os judeus faziam os mercados e os tribunais (Salmo 68,13). Esse encontro entre a multidão que seguia Nosso Senhor Jesus Cristo, a multidão que seguia o cortejo fúnebre e a multidão que se encontrava na porta da cidade não é um acaso, mas é disposto pela vontade divina de Cristo, a fim de que o milagre seja conhecido por muitos, a fim de que muitos possam crer nEle e naquilo que Ele diz, para que muitos possam se salvar.

E Nosso Senhor ressuscita esse jovem diante de uma multidão imensa de pessoas com uma grande facilidade. Ele simplesmente diz ao jovem: Eu te digo, levanta-te. E para provar a ressurreição, o jovem não somente se levantou e se sentou, como começou a falar. Cristo mostra, então, seu domínio absoluto sobre a vida e a morte, domínio que só pode ser divino. Essa ressurreição é bem diferente das ressurreições feitas por Elias e Eliseu no Antigo Testamento, também em favor de viúvas. Os dois tiveram que fazer vários gestos, várias orações, implorando a Deus a ressurreição, enquanto Cristo ressuscita o jovem com uma simples ordem, que se cumpre imediatamente. O bom senso da multidão reconhece que aí está o dedo de Deus e essa multidão se enche de um bom temor de Deus. Digo de um bom temor porque é um temor reverencial e de respeito pela onipotência divina, e temor que leva os presentes a glorificarem a Deus. Se ainda não reconhecem em Cristo o Verbo de Deus humanado, ao menos o reconhecem como um profeta, como alguém enviado por Deus para dizer a verdade. Também nós reconhecemos Cristo como um profeta e muito mais do que um profeta, pois afirmamos que Cristo é Deus. Por que não crer, então, em tudo aquilo que nos ensinou e nos ensina pela sua santa Igreja? Por que não praticar aquilo que Ele nos ordena fazer, se é para a glória de Deus e para o nosso bem, para a nossa salvação?

Mas não devemos esquecer um detalhe importante do Evangelho de hoje. Cristo opera o milagre da ressurreição do jovem por compaixão pela mãe viúva. São as lágrimas da mãe, no fundo, que moveram Cristo a realizar esse milagre, como as lágrimas de santa Mônica moveram Cristo a converter seu filho, Santo Agostinho. As lágrimas, as orações, as súplicas das mães pelos seus filhos – as dos pais também, mas sobretudo as das mães – têm um grande valor e eficácia diante de Deus. Que os pais não negligenciem as orações fervorosas pelos filhos. Essas orações são parte integrante do dever dos pais em relação aos filhos.

Todavia, é outra a lição principal do Evangelho de hoje. Nós sabemos que a ressurreição do jovem filho da viúva de Naim não é a única ressurreição que Cristo fez. Pelos Evangelhos, sabemos que Cristo fez pelo menos três ressurreições. Mas é bem provável que tenha feito muitas outras, pois nem tudo o que Ele fez está escrito. Se se escrevesse tudo o que Cristo fez nem no mundo todo poderiam caber os livros que seria preciso escrever, como nos diz São João (Jo 21,25). Longe esteja de nós, portanto, limitar-nos à Sagrada Escritura, desprezando a Tradição. Dizíamos, então, que são três as ressurreições narradas nos Evangelhos. A ressurreição da filha de Jairo, chefe de uma Sinagoga, a ressurreição do jovem filho da viúva de Naim que acabamos de ouvir, e a ressurreição de Lázaro. A filha de Jairo foi ressuscitada quando ainda se encontrava dentro da casa. O jovem foi ressuscitado no caminho para ser enterrado. Lázaro foi ressuscitado depois de 4 dias já sepultado. Cada um desses três mortos representa as três classes de mortos que Nosso Senhor ressuscita diariamente. A morte da filha de Jairo, ressuscitada ainda dentro de casa, representa o pecado grave cometido por pensamento seguido de consentimento, mas que não se traduziu em nenhum ato exterior. Pensar no mal voluntariamente, alegrar-se com o mal cometido ou desejar fazer o mal são pecados interiores que nos valem a morte se dizem respeito à matéria grave. Nosso Senhor diz, por exemplo, que aquele que olha uma mulher para desejá-la já adulterou em seu coração. A filha de Jairo representa, assim, o pecado interno. O jovem filho da viúva de Naim, ressuscitado no caminho para o cemitério, representa o pecado grave cometido também exteriormente e que tem, portanto, maior intensidade que o pecado cometido só interiormente. Lázaro, ressuscitado depois de quatro dias enterrado, representa o pecado grave que já se tornou uma inclinação arraigada na alma e que a pessoa muitas vezes já nem consegue reconhecer como um mal. Ora, é mais difícil curar o pecado que já se tornou um hábito do que o simples pecado exterior, assim como é mais difícil curar o pecado que se traduziu em obras ruins do que o pecado que é só interior. O pecado puramente interior é mais fácil de ser abandonado e perdoado: Cristo ressuscitou a menina ainda na casa. O pecado que é também exterior já é mais difícil de ser abandonado e perdoado, dada a sua maior intensidade: Cristo ressuscitou o jovem já no caminho para o cemitério, cemitério que simboliza, nesse caso, a morte eterna causada pela separação eterna de Deus. O pecado habitual, aquele que já é para nós quase uma segunda natureza é muito difícil de ser abandonado e, portanto, de ser perdoado: Cristo ressuscitou Lázaro somente após 4 dias de sepultura, quer dizer, já muito perto da morte eterna. E depois de ressuscitado, Lázaro ainda estava amarrado, mostrando que mesmo depois do perdão de um pecado habitual a tendência, a inclinação para voltar a cometê-lo é grande.

Todavia, Cristo ressuscitou cada um desses três mortos, quer dizer, Cristo perdoa todos esses pecados que esses mortos representam, mesmo os mais graves, mesmo os mais arraigados, desde que estejamos dispostos a receber o perdão, quer dizer, desde que (1) detestemos o pecado, desde que (2) tenhamos o firme propósito de não mais cometê-lo, desde que (3) confessemos todos os nossos pecados graves ao padre com sinceridade e simplicidade e desde que (4) estejamos dispostos a cumprir a penitência dada por ele. A confissão é o meio pelo qual a misericórdia divina ressuscita as nossas almas. A confissão foi criada pelo Sagrado Coração de Jesus, que deseja ardentemente a nossa salvação até o ponto de ser transpassado pela lança. Todo pecado é perdoável, mas é preciso buscar logo esse perdão, para não morrermos em pecado mortal. Lembremo-nos de que o filho da viúva era jovem. Busquemos a confissão com confiança e rapidamente.

Devemos também tirar do Evangelho de hoje a lição de que devemos cortar o mal imediatamente na raiz, quer dizer, devemos combater a tentação, cortando-a quando ela começa a aparecer na nossa imaginação e na nossa inteligência. Para combater a tentação devemos fazer o ato de virtude contrário, devemos desviar o nosso pensamento para algo lícito, bom e, se possível, santo. Devemos fugir das ocasiões de pecado, nos mortificar. Se não cortamos esses maus pensamentos imediatamente, terminaremos consentindo, depois passando para as obras e criando um vício, um costume ruim.  É mais fácil evitar que uma árvore seja plantada do que cortar uma árvore já plantada ou que tenha raízes profundas. É preciso, assim, evitar o plantio das árvores más e arrancar as já plantadas. Mas isso não basta. É preciso ocupar o terreno com as árvores boas da virtude, da obediência total à lei de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo na sua imensa compaixão diante de nossas misérias, compaixão tal como a vimos relatada hoje no Evangelho, quer ressuscitar a nossa alma. Mas ele pede também a nossa cooperação. Não recusemos cooperar com um Deus que quer nos salvar.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] “O Senhor chorou”. Ou: A virtude da Piedade em Cristo e em nós, e os pecados que mais ofendem a Deus.

Sermão para o Nono Domingo depois de Pentecostes
21 de julho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

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Rezemos para que a presença do Papa no Brasil possa trazer bons frutos.

 “Videns civitatem, Jerusalem, Dominus flevit.” Vendo a cidade – Jerusalém – o Senhor chorou.

O Evangelho deste Domingo nos fala das lágrimas de Nosso Senhor Jesus Cristo. As lágrimas são, antes de tudo, um sinal de tristeza. Mas, devemos nos perguntar, como aquele que é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus pôde chorar, uma vez que ele tinha a visão beatífica em sua alma? Pois Cristo desde o momento de sua encarnação via Deus face a face, e essa visão impede todo sofrimento. Como pôde, então, aquele que via Deus face a face entristecer-se? Precisamos lembrar que Cristo veio ao mundo para satisfazer por nossos pecados e que satisfez por nossos inúmeros pecados aceitando os sofrimentos – até à morte e morte de cruz – com uma caridade infinita, a fim de nos salvar.  Dessa forma, ele tinha a visão beatífica, Ele via perfeitamente a Deus, como os santos no céu e muito mais perfeitamente que os santos no céu, mas a impassibilidade, quer dizer, a ausência de sofrimento e a imortalidade que decorrem dessa visão face a face de Deus, não se encontravam em Jesus Cristo enquanto ele viveu nessa terra, antes de sua ressurreição. E isso voluntariamente. Cristo via Deus face a face, mas sofreu e quis sofrer para satisfazer perfeitamente por nossos pecados.

Sabendo que Cristo podia chorar, devemos nos interrogar sobre o porquê dessa tristeza profunda de Nosso Senhor no episódio relatado pelo Evangelho. O choro vem da tristeza e a tristeza nos atinge quando vemos algum bem que amamos ameaçado, atacado, destruído. Assim, por exemplo, os parentes choram a perda de um ente querido, manifestando com isso o amor que tinham para com ele. Para compreender, então, porque Nosso Senhor Jesus Cristo chora no Evangelho de hoje, devemos compreender o que ele ama. Ora, Cristo é o abismo de todas as virtudes, isto é, Ele possui e exerce o mais perfeitamente possível todas as virtudes, ou quase todas, pois há virtudes que Cristo não possuía, porque há virtudes que supõem um defeito precedente, como a virtude da penitência supõe um pecado pessoal anterior. E essas virtudes que supõem um defeito anterior, Cristo evidentemente não as possuía, pois Ele é o cordeiro imaculado. Ele sofria com caridade infinita pelos pecados dos outros, mas não pelos seus, pois Ele não os tinha.

Entre todas as virtudes que Cristo possuía e exercia perfeitamente, encontra-se a virtude da piedade. Mas piedade em sentido próprio e não no sentido de devoção ou religiosidade, nem de compaixão ou misericórdia. A virtude da piedade propriamente dita é aquela que nos inclina a render aos pais, à pátria e a todos os que se relacionam com eles a honra e o serviço que lhes são devidos. A justiça nos diz que nos tornamos devedores daqueles que nos deram benefícios. Somos devedores, em primeiro lugar, de Deus, em razão de sua excelência e em razão de todos os bens inumeráveis que nos deu. Além disso, é Ele que nos dá o ser e nos governa. Em segundo lugar, são os pais que nos dão o ser e nos governam. E, finalmente, a pátria, em que nascemos e que nos nutre. E por isso, depois de Deus, o homem é devedor sobretudo dos pais e da pátria, nos diz São Tomás. A primeira dívida é paga com a prática da virtude da religião, pela qual damos a Deus, em união com Nosso Senhor e na medida das limitações de nossa natureza humana, o que lhe é devido. A segunda dívida devida aos pais e à pátria é paga com a prática da virtude da piedade.

Cristo possuía, assim, a virtude da piedade de modo perfeito. Ele amava, então, imensamente a sua pátria e, sobretudo, Jerusalém, o centro de sua pátria. Por isso Cristo chorou, caros católicos. Como Jerusalém recusava o verdadeiro Messias, a verdadeira religião e a salvação, Nosso Senhor chorou, vendo a ruína de tantas e tantas almas que recusaram a sua misericórdia. Toda a destruição material de Jerusalém, profetizada por Cristo e realizada no ano 70, é nada diante da ruína espiritual causada pela cegueira voluntária de Jerusalém. Quantas graças, quantos privilégios dados à cidade santa. E com que ingratidão e infidelidade ela pagou. É o dever dos filhos não só obedecer aos pais em tudo o que é lícito e mostrar o devido respeito, mas também socorrê-los quando esses precisam de ajuda. Nosso Senhor tentou socorrer Jerusalém de todas as formas: orações, ensinamentos, ameaças, milagres, profecias, morte na Cruz. Mas Jerusalém continuou cega e endureceu o seu coração.

Hoje, caros católicos, não há somente uma Jerusalém no mundo, há várias. Quantas nações receberam graça sobre graça, favor sobre favor de Cristo e agora respondem com ingratidão e infidelidade, dizendo: Não queremos que Ele, Jesus Cristo, reine sobre nós (regnare Christum nolumius). Já não queremos suas leis, nem sua Revelação; Revelação, aliás, única verdadeira, pois confirmada por tantos milagres e profecias verdadeiros. E vemos nesses países – que são criaturas de Deus – o jugo doce e suave de Cristo lançado por terra e calcado pelos homens. Consideremos, porém, somente a nossa pátria, que tem se distanciado cada vez mais de Deus, da religião católica, com a aprovação cada vez mais larga, embora sorrateira, do aborto (esse crime que nunca se justifica), com a aprovação de uniões contrárias à natureza, com o laicismo galopante.

Se somos católicos, buscando, então imitar a Cristo, devemos também nós ter e praticar a virtude da piedade para com nossa pátria, caros católicos, porque ela também é princípio de nosso ser, de nossa educação e ela nos governa, fazendo tudo isso enquanto proporciona aos pais – e por meio deles aos filhos – grande quantidade de coisas necessárias e convenientes para o nosso ser. Devemos praticar a virtude da piedade para com nossa pátria como o fez Nosso Senhor Jesus Cristo, obedecendo a ela em tudo o que é bom e socorrendo-a em suas dificuldades, sobretudo espirituais. Devemos, caros católicos, praticar a virtude da piedade buscando que nossa pátria reconheça a verdade e se submeta a ela e possa assim ajudar seus filhos não só materialmente, mas também espiritualmente, mostrando a eles o caminho, a verdade e a vida: Jesus Cristo. Para tanto, devemos rezar por ela, fazer apostolado por ela, nos mortificar por ela. Com esses atos ajudaremos nossa pátria sem cair no excesso de endeusá-la, com um nacionalismo descabido, e sem cair no defeito de rejeitar nossa pátria e dizer como os pagãos: minha pátria é onde me sinto bem. Não, caros católicos! Temos verdadeiro dever de justiça para com a nossa pátria, apesar de seus defeitos.

Mas Jerusalém, que Nosso Senhor Jesus Cristo ama tanto, caros católicos, representa também, e evidentemente, a alma de cada um de nós, agraciada por Deus com inúmeros benefícios, com incontáveis graças e graças abundantes. Recebemos, sobretudo com o batismo, todas as condições para receber Cristo em nossas almas. Nosso Senhor ama, então, cada uma de nossas almas. O amor de Cristo por nós é um amor puro e sobrenatural. É um amor que quer o bem dos homens. Mas não qualquer bem como as riquezas, o reconhecimento, um prazer instantâneo ou qualquer outro bem que se limite a esse mundo. O bem que Nosso Senhor quer é o bem de nossa santificação, de nossa salvação eterna. A tristeza de Nosso senhor vem, então, primeiramente, do fato de muitos desprezarem seus mandamentos e não alcançarem, como consequência, a vida eterna e terminarem perdendo eternamente as suas almas, no inferno. A tristeza de Cristo é causada pelos pecados que impedem a nossa salvação. Cristo chora porque muitas vezes preferimos um instante de satisfação nesse mundo à alegria eterna no céu, ofendendo gravemente as suas leis e crucificando-o novamente.

Assim, Nosso Senhor chora não só sobre Jerusalém, mas sobre as almas. E ele chora sobre as almas quando elas não o amam, quer dizer, quando não cumprem a sua lei. Ele se entristece quando as almas preferem entregar-se ao pecado mortal em vez de se entregarem a Ele.  O pecado mortal, caros católicos, é a transgressão voluntária da lei de Deus em matéria grave. É a negação de Deus como supremo legislador, como soberano governador, como supremo juiz, como supremo benfeitor, como nosso verdadeiro bem e felicidade suprema. O pecado mortal é uma ofensa grave a Deus pela desobediência de suas leis, leis que têm por objetivo o próprio bem do homem e de Deus. O pecado mortal é a recusa total do amor de Deus por nós. O pecado mortal é o inferno em potencial, um potencial que pode virar realidade e muitas vezes vira realidade quando menos esperamos.

A cena histórica e real descrita hoje pelo evangelista é o choro de Nosso Senhor diante de Jerusalém. Estamos pouco antes de sua triunfante entrada nessa mesma cidade no Domingo de Ramos. O povo Judeu vai aclamá-lo como o Filho de Davi, quer dizer, como o Messias. Mas Nosso Senhor chora. Nosso Senhor chora porque, três dias depois, esses mesmos que o aclamaram como o Messias vão pedir a sua crucifixão, recusando a sua lei, a sua graça. Eles louvaram a Cristo com a boca, mas o coração deles estava longe de Deus. Nosso Senhor chora, então, particularmente pelos pecados de nós católicos que o louvamos com a boca, mas que o crucificamos com as nossas obras pecaminosas.

São Paulo, em sua Epístola de hoje, cita alguns dos pecados que mais entristecem a Nosso Senhor. E ele nos dá, então, alguns exemplos que se aplicam de maneira muito especial a nós católicos desses tempos atuais. Tempos em que o amor do homem até o desprezo de Deus tem destruído as mais evidentes verdades católicas.

O primeiro pecado mencionado por São Paulo é a idolatria. A idolatria que nos faz adorar um falso Deus no lugar do verdadeiro. A idolatria de nossos dias é o relativismo, uma espécie de religião acima das religiões. Ele tem como propósito igualar todas as religiões: colocar em pé de igualdade a religião fundada por Cristo – homem-Deus – e as religiões que são fruto da invenção humana ou do pai da mentira.  Ora, religiões que ensinam doutrinas contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. Uma só pode ser a verdadeira. Uma só é a verdadeira religião, aquela anunciada pelos profetas e confirmada pelos milagres de Cristo: a religião católica, como já dissemos.

O segundo pecado de que nos fala o Apóstolo é a impureza (ver a esse respeito o sermão sobre a luxúria): quantos hoje, mesmo entre católicos levam uma vida completamente desregrada nesse ponto. Mesmo entre o clero, infelizmente. Quantos perdem o céu por causa de um ato que nos assemelha ao animais irracionais. Quantos pecados cometidos contra a castidade. Muitos cometidos sozinhos. Muitos não esperam o casamento. Aqueles que casam se divorciam e se juntam, em adultério, com outra pessoa. Os casados utilizam métodos anticoncepcionais e assim por diante. Ora, os bens do matrimônio são três: (i) a fidelidade – contra o adultério – (ii) a indissolubilidade – contra o divórcio e o recasamento – e (iii) os filhos – contra a anticoncepção e mentalidade contraceptiva. E um dos bens do sacerdócio é o celibato.

Esses pecados e todos os outros pecados, caros católicos, entristecem a alma de Nosso Senhor. Dominus flevit. O Senhor chorou à vista de Jerusalém que ia cometer o deicídio. Nosso Senhor chorou em previsão de todos os nossos pecados. Foram nossos pecados que crucificaram a Cristo. E nosso crime é ainda maior que o dos judeus, pois professamos e reconhecemos que Cristo é Homem e Deus e veio para nos salvar. Dominus flevit. O Senhor chorou por causa de nossas ofensas. O Senhor chorou porque nos amou profundamente, porque buscou em tudo a nossa salvação, mas nós preferimos o pecado. Quanta ingratidão!

É preciso, então, parar de ofender a Cristo, praticando a religião. Sabemos que hoje, neste mundo que se opõe cada vez mais à virtude, isso não é fácil. Mas Nosso Senhor não prometeu a facilidade, caros católicos. Ele não veio trazer a paz, pelo menos não como o mundo a compreende, mas Ele veio trazer a guerra. Ele deu a cada um uma cruz e junto com essa cruz, Ele deu graças abundantes para carregá-la e uma Mãe para nos ajudar, Nossa Senhora. São Paulo nos diz: Deus não permitirá que sejais tentados além do que podem as vossas forças. Assim, se o combate é difícil, porque o pecado em nossa sociedade é abundante, a graça de Nosso Senhor é superabundante, seu jugo é leve e suave. O Apóstolo afirma hoje, DEUS É FIEL: ele sempre nos dá as graças necessárias. Resta saber se nós somos fiéis às promessas de nosso batismo. Devemos mostrar nossa fidelidade pela submissão de nossa inteligência às verdades reveladas por Deus e pela prática incondicional da moral católica, evitando assim entristecer e ofender ao Sagrado Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não basta honrar Deus com os lábios para depois crucificá-lo, como fizeram os Judeus na semana santa. Se Deus é fiel, também nós devemos sê-lo.

Convertamo-nos, então. Tenhamos confiança em Nosso Senhor Jesus Cristo: sem Ele nada podemos fazer. Busquemos a confissão. E se cairmos de novo, levantemo-nos, com verdadeiro arrependimento, e busquemos novamente a confissão. Tenhamos confiança: a misericórdia de Deus é imensa. Alegremos a alma de Cristo, pedindo perdão pelos nossos pecados, comungando com frequência, desagravando – com boas obras – o Coração de Nosso Senhor, ferido por nossos pecados.  Alegremos o Coração de Nosso Senhor e o Imaculado Coração de Maria pela prática da virtude, pela prática sincera e íntegra da religião católica. Ele nos ajudará com suas graças. Alegrando o coração de Cristo também o nosso coração se alegrará profundamente. Como nos diz o Salmista (118,1): “Felizes aqueles cuja vida é pura e seguem a lei do Senhor”. Felizes porque a lei do Senhor é para nosso bem e para a maior glória dEle.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A ira santa e a paciência imprudente

Sermão para o Quinto Domingo depois de Pentecostes
23 de junho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

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“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus.” “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás e quem matar será condenado em juízo. Pois eu vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo.” (Mateus V, 21)

Neste trecho do Sermão da Montanha, que é o resumo da Lei Evangélica – lei do amor a Deus e ao próximo -, Nosso Senhor, legislador supremo, que aperfeiçoa a lei antiga e condena as interpretações erradas dadas pelos fariseus e escribas, mostra o valor profundo do quinto mandamento.  Não matar é insuficiente. É preciso cortar o mal em suas origens, pela raiz, é preciso coibir a ira, causa do homicídio.

O divino legislador parece, porém, violar a própria lei por Ele estabelecida. Pouco antes de estabelecer o perfeito sentido do quinto mandamento, Nosso Senhor atacou e condenou os fariseus, dizendo que a justiça deles era insuficiente para entrar no céu. Mas não somente isso: Nosso Senhor expulsa os vendilhões do templo com ira e condena os fariseus chamando-os de hipócritas, de cegos, de serpentes, de víboras, de orgulhosos. Haveria, então, uma contradição entre o preceito dado por Cristo e a sua atitude face aos fariseus?

A contradição, claro, é somente aparente. Para resolvê-la, devemos compreender o verdadeiro sentido do preceito e conhecer quem eram os fariseus e os escribas. Como explicam todos os Padres da Igreja baseados no texto grego do Evangelho de São Mateus, o que Nosso Senhor proíbe como pecado é a ira sem motivo. A ira é o sentimento, a paixão, que nos move a agir para restabelecer a ordem lesada por uma injustiça, para defender um bem que é atacado, uma verdade que é atacada. Assim, se esse movimento de cólera se dirige contra um verdadeiro mal a fim de restabelecer a justiça, a verdade ou a virtude por meios lícitos e dentro dos devidos limites, a ira não somente não é proibida, mas é mesmo louvável porque, neste caso, ela é conforme à razão e à moral. A ira encontra sua origem no amor do bem e da justiça. Quando o bem ou a justiça são atacados, nada mais virtuoso do que defendê-los dentro dos devidos limites. A ira deve, então, ser dirigida pela razão e voltar-se contra o mal, contra o vício, contra o pecado, que são uma ofensa a Deus, nosso maior bem. E face ao pecado e ao vício, a ausência de ira pode ser um pecado porque mostra a falta de amor por Deus. O preceito de Nosso Senhor – “todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo” – encontra seu verdadeiro sentido quando se compreende desse modo: todo aquele que se irar contra seu irmão, sem motivo, será condenado em juízo.

Resta saber se a ira de Nosso Senhor relativa aos fariseus é justa ou não.  Para tanto, é preciso conhecê-los. Fariseu quer dizer separado e comumente se pensa que os fariseus são aqueles que cumprem com exatidão a lei de Deus. Com frequência, católicos sérios são acusados de serem fariseus por buscarem, apesar de suas inúmeras fraquezas e defeitos, praticar bem a lei de Cristo, opondo-se às leis desse mundo. Ora, se os fariseus fossem simplesmente fiéis observadores da Lei de Deus, Nosso Senhor não teria razão para repreendê-los e condená-los, mas sim para elogiá-los dizendo: “servos bons e fiéis entrem na alegria do Senhor”. Nosso Senhor observou perfeitamente a Lei Mosaica e Nossa Senhora também. Seriam eles fariseus? Os fariseus não são aqueles que observam perfeitamente a lei de Deus.  Ao contrário, os fariseus não praticavam a lei dada por Deus e não deixavam os outros praticá-la: em primeiro lugar porque os fariseus e escribas – seguindo tradições puramente humanas, inventadas por eles, e interpretando a Lei segundo seus gostos – violavam essa mesma lei. Sob pretexto de cumprir tais tradições, a lei dada por Deus era desprezada. Sabemos que nenhuma lei humana, nem mesmo a lei de um país pode contrariar a lei estabelecida por Deus. Assim, inventaram uma consagração de certos bens a Deus para não ajudar os pais, evitando perder, dessa forma, certa riqueza (Marcos VII, 11), e se opondo ao quarto mandamento. Em segundo lugar, os fariseus violavam a lei porque praticavam uma religião puramente exterior, em que a pureza exterior substituía a santidade interior. Assim, eles pagavam o dízimo de todas as ervas (o que era bom e louvável), mas negligenciavam a justiça e a misericórdia (Mateus XXIII, 23). Eram hipócritas, bonitos por fora como um túmulo pintado de branco, mas no interior cheio de podridão. Finalmente, os fariseus violavam a lei pelo orgulho: todas as suas boas obras eram para ser vistas pelos homens e não por amor a Deus, em franca oposição ao que é preciso fazer, pois “quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (I Cor X, 31) . Com essa doutrina, os fariseus não entravam no céu e também não deixavam os outros entrar, uma vez que eram os guias do povo. Eram, então, cegos guiando cegos. Haveria maior mal do que esse, haveria maior ofensa a Deus do que essa: impedir que os outros entrem no céu?

Nosso Senhor Jesus Cristo – que amava a Deus da maneira mais perfeita possível e que buscava a salvação das almas – não poderia ficar impassível face à péssima doutrina dos fariseus. Ele, sendo bom, amava a justiça, e a justiça lesada pede reparação. Assim, a ira de Nosso Senhor contra os fariseus é, em realidade, virtuosa porque ela tem um motivo perfeito: os direitos de Deus atacados e a salvação das almas impedida pela doutrina dos fariseus e escribas. É importante sabermos que existe uma ira santa. Muitos católicos pensam que a santidade consiste numa total indiferença face ao mal, no fato de não reagir de maneira alguma, na tolerância da diferença. Tudo isso baseado em um falso conceito de mansidão. A mansidão não impede a ira, mas a regula segundo a reta razão iluminada pela fé. De um lado, a mansidão impede a ira desordenada que pode ser pecado mortal ou venial, segundo exceda grave ou levemente os limites impostos pela razão na correção do próximo, na reparação da justiça, na defesa de um bem, de uma verdade. Do outro lado, ela impede uma excessiva brandura, originada do amor por uma falsa paz.  O exemplo de santidade e de mansidão é Cristo e Ele mostrou que em determinados momentos uma ira santa é indispensável. Assim, Santo Agostinho nos diz que aquele que não se enfurece (de maneira ordenada), quando há uma causa para isso, peca por uma paciência imprudente que favorece os vícios, aumenta a negligência e encoraja o agir mal. A ausência da ira seria então pecar contra a justiça e a caridade. Nós católicos e, sobretudo, aqueles constituídos em autoridade deveríamos, então, nos levantar para defender os direitos de Deus e nos opormos, com vigor, às leis e doutrinas iníquas: divórcio, aborto, contracepção, união contra a natureza, entre tantas outras… A nossa paciência imprudente já permitiu males enormes…

Todavia, a ira para ser santa deve ser prudente.

Ela deve ter como causa uma verdadeira injustiça. Ela deve proceder da inteligência e da vontade e não de um sentimento impetuoso e descontrolado. Ela tem que ser dominada pelo homem e não o homem ser dominado por ela. Se nossa inclinação é de falar bruscamente, com voz destemperada e expressões indevidas, com grosserias, palavras de baixo calão, nossa ira é desordenada, pecaminosa. Se nossa ira nos leva a agressões ou destruição do bem alheio, ela é pecaminosa (a não ser, claro, em caso de legítima defesa, ou em caso de exercício da legítima autoridade, mas sempre proporcionalmente ao mal que é combatido).

A ira santa deve ser exercida quando há alguma esperança de êxito e principalmente por aqueles que têm obrigação de denunciar a injustiça e de restabelecer a ordem. E, ainda que não haja a possibilidade de êxito, às vezes é preciso para não escandalizar os outros, dando a impressão de que estamos de acordo com o mal. Ela deve ser sempre proporcional ao mal causado, como já dissemos.

Ela deve ter em vista mais o bem comum e a glória de Deus do que o bem privado. A ira santa não deve ter como objeto os males e as pequenas injustiças que sofremos porque eles têm para nós algo de justo – pois merecemos ser punidos pelos nossos pecados – e de bom – porque se os aceitamos de bom grado, Deus nos conduz à vida eterna. Devemos ter muita paciência nas tribulações, unindo-nos a Nosso Senhor. Podemos, claro, buscar afastar essas adversidades e a causa do sofrimento, mas sempre com serenidade e com submissão à vontade de Deus. Diante do sofrimento e das adversidades, que nossa ira nunca se volte contra Deus, que é o autor de todo o bem.

Na ira santa, não devemos desejar o mal do pecador, mas o bem que é sua correção e o bem que é o restabelecimento da ordem violada – que no mais das vezes passa, claro, pela punição daquele que fez o mal.

Atenção. É muito fácil equivocar-se na apreciação dos justos motivos que justificam a ira e é muito fácil perder o controle no exercício dela. É preciso estar, então, muito alerta e, na dúvida, o melhor é inclinar-se à doçura e não à ira. 

Assim, Nosso Senhor, verdadeiramente manso, soube perfeitamente o momento de irar-se ou e não irar-se, pois muitas vezes o remédio mais eficaz diante de um mal não é a ira. Nosso Senhor irou-se contra os fariseus, pertinazes no erro e no pecado, mostrando a falsidade da doutrina desses mestres hipócritas, a fim de conduzir o povo a Deus e a fim de tentar converter os próprios fariseus. Mas Ele não se encolerizou contra Herodes ou Pilatos no momento de sua paixão, pois não convinha que Nosso Senhor reagisse: sua ira não os tiraria do mal no qual estavam afogados e convinha que ele morresse para nos salvar. Nosso Senhor também não se encolerizou nem com os apóstolos lentos para compreender os seus ensinamentos nem com outros pecadores (Maria Madalena, Zaqueu): neste caso, Ele sabia que o melhor remédio para conduzi-los a Deus era a paciência e a doçura e não ira.

Como diz, então, o Salmo: “Irai-vos, mas não pequeis”. Irai-vos por uma causa justa, irai-vos dentro dos justos limites. Irai-vos sem deixar se levar pela ira. Irai-vos mantendo sempre o controle da razão iluminada pela fé e pela caridade. Irai-vos amando o próximo, afastando o ódio pelos outros. Na dúvida, vale mais inclinar-se à doçura.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Nota do Editor: os destaques são nossos.]

[Escrito dos Santos] Santa Catarina de Sena dá recado aos maus padres…

 [Republicação] Texto publicado originalmente em 30 de abril de 2010.

Nota: em tempos de padres excomungados… ainda melhor circunstância para a republicação.

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Hoje, segundo o calendário litúrgico do Missal Romano de 1962, celebra-se a festa de Santa Catarina de Sena, essa que foi uma santa admirável do séc. XIV, uma brava religiosa que teve influência fundamental para a resolução do Grande Cisma do Ocidente. Fazendo uma leitura de uma de suas cartas, que segue abaixo, achei que valeria a pena lembrar com que coragem e fervor agia essa eloquente santa em suas cartas, não hesitando em condenar e dizer poucas e boas àqueles que agiam mal, especialmente os próprios sacerdotes. Quanto ela não diria hoje a esse clero que causa tanto escândalo e humilhação à Santa Madre Igreja e ao Papa Bento XVI?.

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Os males do egoísmo

(Carta 2, para o padre André Vitroni)

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“(…) Ao contrário, o cristão que usa a razão torna-se um anjo na terra. Sobretudo os sacerdotes, que Deus chama de “ungidos”, devem ser anjos, não homens! E realmente o são, quando não recusam a iluminação divina. O sacerdote desempenha o ofício dos anjos! (…) Assim, os sacerdotes na hierarquia dão-nos o corpo e o sangue de Cristo crucificado, Deus e homem pela união da natureza divina com a humana; em Jesus a alma estava unida ao corpo; a alma e o corpo estavam unidos à divindade, em natureza igual à de Deus Pai. Mas o sangue e o corpo de Jesus devem ser ministrados por pessoas retamente iluminadas por Deus na ardente chama da caridade, para suas almas não serem devoradas pelo lobo infernal. Sacerdotes assim alimentam-se de virtudes, que depois são dadas às almas para a vida na graça, como frutos de uma caridade perfeita e verdadeira.

Como dissemos antes, agem diversamente os que cultivam na alma a árvore do egoísmo. Toda sua vida é corrompida, uma vez que corrompida está a raiz principal, a afeição da alma. (…) Tratando-se de religiosos ou sacerdotes, suas vidas não imitam a vida dos anjos, nem a dos homens, mas a dos animais, que rolam na lama. Às vezes são piores que leigos! De que ruína e castigo são dignos! A linguagem humana é incapaz de os descrever. No dia do juízo, a alma experimentará! Tais pessoas desempenham o papel dos demônios, que procuram afastar as almas de Deus para levá-las consigo ao falso descanso. Também eles abandonaram a vida reta e santa, perderam a iluminação divina, vivem na maldade.

Vós (padre André, a quem S. Catarina escreve) e os demais sacerdotes sabeis disso e o vedes! Há padres e religiosos cruéis consigo mesmos, amigos do demônio e companheiros dele antes da hora. São cruéis também com os outros, pois não amam o próximo na caridade. Não protegem as almas; devoram-nas. Põem-se a si mesmos nas mãos do lobo infernal. Ó homem infeliz! Quantas coisas te pedirá o supremo juiz e tu não as poderás dar. Por isso cairás na morte eterna. Não percebes o castigo futuro, porque estás sem a iluminação divina, não tens consciência da missão que Deus te deu.

Alguém assim não leva vida de religioso, porque tudo nele está desordenado. Nem leva a vida de clérigo, fiel ao Ofício Divino, como é seu dever, cuidando dos pobres, zelando pela Igreja. Ao contrário, tais pessoas vivem como senhores, no luxo e nos prazeres, com muitos ornatos, muita comida, muito orgulho e empáfia. Parecem insaciáveis. Se possuem um benefício, querem dois; se possuem dois, querem três. Jamais se dão por satisfeitos. No lugar da Ofício Divino – oxalá não fosse verdade! – põem prostitutas, armas e espadas, como para se defenderem de Deus contra quem estão em guerra. Mas como lhes será difícil, quando o Senhor estender para eles a vara da justiça divina. Com seus bens, tais infelizes alimentam filhos e outros demônios encarnados, amigos seus.

[Sermão/Carnaval] As ofensas ao Imaculado Coração de Maria

Sermão na Festa dos Sete Fundadores dos Servitas de Maria
11 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

A providência quis que passássemos esse Carnaval na companhia de Nossa Senhora. Ontem tivemos a festa de Lourdes, hoje temos a festa dos sete fundadores da ordem dos Servos de Maria, ordem que possui especial devoção a Nossa Senhora das Dores. Essas duas lembranças marianas durante esse período do carnaval são bem importantes. Consideremos ambas brevemente.

Nossa Senhora de Lourdes, como Nossa Senhora de Fátima depois dela, nos exorta à penitência. Lembro que devemos considerar com seriedade essas aparições aprovadas pela Igreja, ainda que não sejam matéria de fé e que, ao contrário, para o bem da nossa alma, devemos nos afastar de aparições não aprovadas, como todas as atuais. Nossa Senhora de Lourdes nos exorta, então, à penitência, como dizíamos. Essa penitência tem aqui dois sentidos, como já dissemos no advento, se vocês se lembram bem.  O primeiro e mais importante sentido é o de arrependimento pelos pecados, com verdadeira dor espiritual e o firme propósito de não mais voltar a pecar. Essa penitência leva a uma boa confissão. A irmã Lúcia, vidente de Fátima, escreveu: “muitos colocam o sentido da palavra penitência nas grandes austeridades… desanimando”. O principal sentido de penitência que Nossa Senhora quer e que Deus quer, e que devemos buscar,  nesse período de carnaval e na Quaresma que iniciará em breve, é a detestação dos nossos próprios pecados, com o propósito de não mais cometê-los.

Todavia, esse sentido de penitência não exclui a penitência no sentido de mortificação exterior, como satisfação pelos nossos próprios pecados e pelos pecados dos outros. Aliás, ao contrário, pois um verdadeiro arrependimento leva ao desejo de satisfação. É preciso que ofereçamos a Deus algo que possa ser agradável a Ele mais do que o pecado o ofendeu. Um dos meios de fazer isso são as mortificações exteriores unidas necessariamente ao sacrifício de Cristo, claro. Elas são necessárias para satisfazer pelo pecado, mas também para obter graças, vencer-se a si mesmo e para nos incorporar a Cristo, que é Cristo crucificado. E essas obras satisfatórias e meritórias nós podemos aplicá-las aos outros, em virtude do dogma da comunhão dos santos.

Consideremos brevemente, agora, Nossa Senhora das Dores. As sete espadas que transpassam o coração de Nossa Senhora das Dores remetem aos maiores sofrimentos dela durante sua vida, mas indicam também que ela foi, depois de seu Filho, a pessoa que mais sofreu nesse mundo, pois o número sete representa a plenitude. Nossa Senhora sofreu com os sofrimentos de seu Filho. Ela sofreu porque seu Coração é praticamente um só com o de seu Filho. Eles amam a mesma coisa: a glória de Deus. Eles repudiam a mesma coisa: o pecado. Assim, Nossa Senhora, ao ver seu Filho inocente sofrer pelo pecado, sofria junto com Ele, pela maldade dos homens. Quando se ofende o Filho, também a Mãe é ofendida. Portanto, pelos pecados do Carnaval, são os Corações de Jesus e Maria que são desprezados e ofendidos. Como se não bastasse ofender o Coração Amantíssimo de Nosso Salvador, também se ofende o Coração de Maria, nossa Mãe. Pois mãe é aquela que gera e, sem dúvida, é pela mediação de Nossa Senhora que somos gerados para a vida da graça. É por Ela que Cristo veio ao mundo, é por Ela que todas as graças passam, vindas do Sagrado Coração de Jesus. A graça é como a água. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte. O Imaculado Coração de Maria é o aqueduto. Que tristeza: ofender o Coração de nossa Mãe, aquela que quer unicamente o nosso bem, a nossa salvação. Quanta ingratidão.

Sigamos o conselho de Nossa Senhora de Lourdes. Penitência como arrependimento e penitência como satisfação. Apliquemo-nos a não acrescentar mais espadas no Coração de Maria. E busquemos fazer nosso coração um só coração com o de Nossa Senhora e o de Nosso Senhor. É nisso que consiste nossa verdadeira felicidade.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre as consequências da luxúria

Sermão na Festa da Aparição da Virgem Maria em Lourdes
11 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No sábado passado consideramos a bondade divina, e alguns dos benefícios que nos ela nos fez, desde a nossa criação até a honra a que nos elevou, a honra de filhos adotivos de Deus, a honra de participar da própria vida da Santíssima Trindade, indo até a morte do Verbo Encarnado da Cruz. Hoje, ao contrário, vamos considerar as consequências da luxúria, ou seja, as consequências desse pecado capital – o principal cometido durante o carnaval – que se opõe ao sexto e ao nono mandamentos.

Um pecado capital é na verdade um vício. Um pecado capital não é uma ação isolada. O pecado capital é uma disposição bem enraizada na alma para operar mal, para agir contra a razão e contra Deus. Portanto, se alguém peca uma vez contra o sexto mandamento, peca gravemente, mas não está ainda atingido pelo vício, pois um ato só não cria uma disposição bem enraizada na alma. Se a pessoa comete várias vezes os mesmos pecados, ela terá em sua alma uma disposição para cometê-los, ela terá, então, um vício. O vício ou um pecado capital não é um pecado em si, mas é uma inclinação forte para cometer certo tipo de pecado. E certos vícios são chamados de vícios capitais ou pecados capitais justamente porque são a cabeça de muitos outros pecados, gerando-os com grande facilidade. Portanto, quando pecamos, é preciso que nos corrijamos imediatamente, e se se trata de pecado grave, confessando-nos. Primeiro, para obter o perdão divino, recobrar a graça e voltar a merecer o céu. Segundo, para que não adquiramos o vício relativo a esse pecado, pois vencer um vício é, evidentemente, muito mais difícil.

O pecado ou vício capital de que tratamos hoje é o da luxúria. É o principal do carnaval. E não somente do carnaval. Hoje, infelizmente, em nossa sociedade ele é onipresente. A luxúria diz respeito à deleitação venérea desordenada. Diz respeito, portanto, à deleitação venérea desordenada – aquela que se opõe à razão, à lei natural e à lei divina – em atos, pensamentos consentidos ou olhares consentidos. Ela se refere, portanto, a essa deleitação venérea fora do matrimônio, ou dentro dele, mas contra a finalidade primária do matrimônio, que é a procriação.

Como dissemos, o pecado capital recebe esse nome justamente porque ele é a cabeça de várias outras desordens. São gravíssimas as desordens geradas pela luxúria. Para compreender como essas consequências ocorrem, é preciso ter em mente que a alma humana é una e que, portanto, quando uma de nossas faculdades se aplica com veemência a alguma coisa, as outras faculdades não podem se aplicar ao seu próprio objeto. Por isso, alguém que estuda ouvindo musica, ou ouvirá a música, ou estudará ou fará as duas coisas mal feitas, pois a alma sendo una, não pode se aplicar com veemência a duas coisas distintas. Assim, é óbvio que quando a alma está manchada com o vício da luxúria, as faculdades superiores – a inteligência e a vontade – são gravemente prejudicadas, pois as faculdades inferiores se aplicam com veemência ao seu objeto de forma contrária à razão.

Vejamos, então, as filhas da luxúria, segundo São Tomás. A primeira delas, na ordem da inteligência, é a cegueira do espírito. A alma passa a julgar as coisas não mais pela razão, e tais como elas são, mas segundo a paixão, segundo suas inclinações. Isso a impede de conhecer a verdade, ao menos plenamente ou como poderia conhecê-la. A consequência é o erro na apreciação da realidade. Daí a cegueira diante das realidades eternas e mesmo a perda do bom senso. A pessoa passa a julgar as coisas como ela quer e não como as coisas são. A pessoa já não consegue discernir o bem do mal. Por isso, o Profeta Daniel diz a um dos velhos que cobiçaram Suzana: A formosura seduziu-te e a concupiscência perverteu-te o coração.

A segunda filha da luxúria é a precipitação. A precipitação consiste em agir segundo o ímpeto da vontade ou da paixão, e não sob a direção da razão que busca agir somente após a devida consideração, reflexão e ponderação, considerando a realidade das coisas, considerando a própria experiência, a experiência dos antigos, o ensinamento dos outros, etc. A precipitação despreza tudo isso para agir sob o ímpeto da paixão ou da vontade. O homem precipita a sua ação antes de considerar todas essas coisas.

A terceira filha da luxúria é a inconsideração, pela qual a pessoa não consegue julgar corretamente os meios que deve empregar para agir bem.

A quarta filha da luxúria é a inconstância. Apegada às deleitações desordenadas, a alma pode até chegar a reconhecer o que é bom, ela considera o que deve fazer e se propõe a fazê-lo, mas não passa à ação, impedida pelo ímpeto da concupiscência desordenada, que lhe tira o vigor para agir bem.

A quinta filha da luxúria, agora na ordem da vontade, é o amor desordenado de si mesmo, pois a deleitação irracional da luxúria é um egoísmo. A pessoa se opõe a Deus, se opõe ao próximo, se opõe à sociedade, para ter uma satisfação instantânea.

A sexta filha é o ódio a Deus, por oposição ao amor desordenado de si. A pessoa quer tanto cometer esses pecados que ela passa a odiar Deus, que a proíbe de fazer tais coisas.

A sétima filha é o apego à vida presente, na qual a pessoa quer permanecer a todo custo para continuar com suas deleitações desordenadas.

A oitava filha, por oposição, ao apego à vida presente é o desespero com relação à vida futura, pois a pessoa afetada demasiadamente pelas deleitações carnais desordenadas não cuida das coisas espirituais, mas se aborrece com elas e desespera de sua salvação.

Poderíamos, ainda, citar outras filhas da luxúria que São Tomás não cita. Poderíamos citar a efeminização da sociedade, no sentido técnico da palavra, que significa o fato de seguir as suas paixões sem combatê-las, formando nas pessoas um caráter fraco, e nos homens um caráter sem virilidade alguma, pois é preciso ter em mente que a virilidade do homem consiste justamente no combate às paixões desordenadas, em particular no combate à luxúria. O homem verdadeiramente viril é um homem casto. O homem que não é casto, por mais que não seja homossexual é efeminado, no sentido em que dissemos. A luxúria gera também o assassinato: o aborto. E leva à eutanásia. Se a pessoa já não pode gozar a vida, melhor que morra. A luxúria bestializa o homem.

Podemos ver, então, porque a luxúria é um pecado capital. Nós vemos hoje onipresentes todas as filhas da luxúria em nossa sociedade. A cegueira da mente, pela perda do bom senso de nossos contemporâneos, pela perda do julgamento do que é certo e do que é errado, a disseminação do erro em todas as esferas. A falta total de reflexão de nossos contemporâneos, que agem por ímpeto, por paixão, por sentimento, sem pensar na sabedoria dos antigos, sem pensar, em particular, naquilo que a Igreja e os Santos ensinam. Podemos ver também que quando alguém chega a refletir, não consegue levar em conta os verdadeiros elementos, em particular a vida sobrenatural, e não consegue fazer um juízo correto de como deve agir. Vemos a falta de determinação das pessoas em suas decisões, a sua falta de constância em fazer o verdadeiro bem e perseverar neles. Vemos também o egoísmo reinante e vemos o ódio crescente a Deus e a sua Igreja, que combate justamente contra esse vício. Muitas das leis iníquas, opostas à lei de Deus e sua Igreja têm sua origem próxima nesse vício. Vemos, claramente, o apego à vida presente e a onipresente necessidade de curtir a vida e o aborrecimento total para com as coisas do alto. Vemos o desespero reinante em nossa sociedade, que tenta a todo custo prolongar ao máximo a vida dos homens aqui na terra, esquecendo que nossa pátria é o céu.

Alguém que possui o pecado capital da luxúria deve combatê-lo. Antes de tudo, rezando bastante, tendo uma vida de oração. É preciso rezar quando vêm a tentação, as imaginações ruins, os pensamentos ruins. É preciso, nesse momento, desviar o pensamento para outra coisa boa, lícita, se possível santa, que possa ocupar inteiramente nossa imaginação e nosso pensamento. Em seguida, é preciso evitar as ocasiões de pecado, as situações, os ambientes, as pessoas que levam a cometer tais pecados. Em particular, é preciso ter extremo cuidado com os meios de comunicação modernos: internet, televisão. Só se deve acessar internet quando há um objetivo bem definido e deve-se sair quando o atingimos. Ficar navegando à toa e sem rumo dificilmente acaba bem. É preciso mortificar-se, mesmo em coisas lícitas, pois isso facilitará muito evitar coisas ilícitas. É preciso mortificar os sentidos, sobretudo os olhos, tentando mantê-los abaixados quando saímos de casa e evitando a curiosidade, evitando ver tudo o que acontece ao nosso redor. Devemos ser moderados e mortificar-nos na comida e no beber. O comer pertence, como a deleitação venérea, ao apetite concupiscível, de forma que a desordem em um provoca a desordem no outro, enquanto a virtude em um favorece a virtude no outro. É preciso fazer atos de fé, de esperança e de caridade. Aquele que tem esse vício não deve desesperar, mas deve empregar todos esses meios com verdadeira determinação. É preciso frequentar com assiduidade os sacramentos da comunhão e da penitência para evitar as quedas futuras. Se por fraqueza cair, é preciso buscar se confessar o mais rápido possível, com verdadeira contrição, bem entendido. É preciso considerar as consequências desse pecado: a perda do céu, o merecimento do inferno, a ofensa infinita a Deus. Tudo isso por um instante de satisfação.  Nessa matéria, o ser humano é muito fraco. Se ele confia demais em si mesmo, terminará caindo. É preciso desconfiar de si mesmo, sobretudo nessa matéria, empregando os meios mencionados e confiando muito em Deus, rezando bastante. E, claro, é indispensável uma terna devoção a Nossa Senhora.

São graves as consequências da luxúria. Uma sociedade, como a nossa, em que a luxúria é rainha e que favorece sobremaneira a luxúria está destinada à ruina. Nenhuma sociedade pode se sustentar quando está fundada no erro, na precipitação, na inconsideração, na inconstância, no amor a si mesma, no ódio a Deus, no apego à vida presente e no desespero das coisas do alto. Para chegarmos a uma sociedade inimiga de Deus, bastou ao demônio favorecer a luxúria.

Portanto, o carnaval destrói a sociedade. Uma sociedade que passa o ano inteiro se preparando para o Carnaval é uma sociedade arruinada. Um carnaval constante como, na verdade, vivemos em nosso país e no mundo todo é a destruição de nossa sociedade. Uma sociedade fundada na areia não pode subsistir. Peçamos a Deus que tenha piedade de nós e de nosso Brasil, para que nosso país volte a cumprir as promessas de seu batismo, feitas quando da vinda dos missionários portugueses. Que nosso Brasil volte a ser a Terra de Santa Cruz. Rezemos à Nossa Senhora de Lourdes, que festejamos hoje e à Nossa Senhora Aparecida.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] Programa para a Quaresma: a Cruz, a caridade, a oração e a batalha contra o defeito dominante

Sermão para o Domingo da Quinquagésima
10 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“Se não tiver a caridade, nada sou.” (I Cor, 13)

Três dias somente nos separam do começo da Quaresma. A Santa Igreja continua a nos preparar e a nos dispor, pela Sagrada Liturgia, a uma Quaresma que possa o dar frutos eternos. Para tanto, a Igreja nos apresenta o sublime elogio da caridade na Epístola de São Paulo e nos apresenta, no Evangelho, o anúncio da paixão e a cura de um cego. Mas como essas três coisas nos preparam de maneira perfeita para a Quaresma, pois não parece haver muita relação entre elas?

Para compreender o que a Igreja quer nos ensinar, devemos, antes de tudo, considerar bem a finalidade da Quaresma. A quaresma são quarenta dias de conversão, quarenta dias para que possamos morrer ao pecado com Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de ressuscitar com Ele para a vida da graça. Para fazer isso, precisamos da penitência, pela qual, com verdadeira dor e detestação de nossos pecados, satisfazemos pela ofensa feita a Deus. Todavia, a penitência sozinha não serve para nada, se ela não é inspirada pela caridade, quer dizer, ela não serve para nada se ela não é feita em união com Deus ou tendo em vista essa união com Deus, essa amizade com Deus. E isso porque a melhor das ações não tem valor algum para a salvação, se ela não é acompanhada da caridade ou se ela não tem por fim a caridade. Além disso, como somos fracos e inconstantes e sem Deus nada podemos fazer, devemos pedir a Deus, pela oração, que nossas penitências acompanhadas da caridade sejam agradáveis aos seus olhos.

Dessa forma, podemos compreender porque a Igreja escolheu estas passagens da Sagrada Escritura para o Domingo que precede a quaresma. A Igreja anuncia a Cruz, para que satisfaçamos pelos nossos inumeráveis pecados. Ela faz o elogio da caridade porque sem a caridade nada tem valor, dado que só a caridade ordena tudo a Deus. E, finalmente, ela nos apresenta a cura do cego, na qual encontramos um modelo de oração: “Filho de David, tende piedade de mim.” Assim, não podemos fazer uma penitência sincera sem ter por finalidade a união com Deus. E, ao mesmo tempo, não podemos estar verdadeiramente unidos a Deus se recusamos carregar a nossa própria cruz, quer dizer, se recusamos fazer penitência. A cruz e a caridade são inseparáveis nessa Terra. Todavia, nem a caridade nem a cruz podem existir sem a oração, pois sem Deus nada podemos fazer. É preciso fazer penitência não para se orgulhar, não para se mostrar aos outros, mas para recobrar ou aumentar a nossa amizade com Deus, pedindo-lhe, pela oração, essa amizade. Durante a Quaresma, a união da penitência, da oração e da caridade é indispensável. Uma Quaresma sem um desses três elementos seria uma Quaresma infrutífera, que não conduziria a uma união profunda e duradoura com Deus, união que é, justamente, o objetivo da Quaresma. É por isso que, tradicionalmente, recomendam-se esforços nesses três frontes durante a Quaresma: penitência (privar-se de algo que gosta, por exemplo), oração (determinar dias de visita ao Santíssimo, rezar um terço a mais, ou outra devoção) e obras de caridade (como, por exemplo, esmolas ou as obras de misericórdia corporais e espirituais).

Gostaria, porém, de dar um exemplo e uma sugestão, caros católicos, de resolução para essa Quaresma. Exemplo e sugestão de uma resolução que une muito bem esses três elementos de que acabamos de falar. Trata-se do combate de cada um contra seu defeito dominante.

O demônio, inimigo do homem, é como um leão que ruge ao nosso redor, procurando nos devorar. Com muita inteligência, ele busca, precisamente, nos atacar em nosso ponto fraco. Assim, ele faz a ronda para examinar todas as nossas virtudes teologais, cardeais e morais, e é no ponto em que nos encontra mais fraco, é nesse ponto, que é o mais perigoso para a nossa salvação, que ele nos ataca e tenta nos abater. Como um bom chefe de guerra, ele sabe que uma vez tomado o ponto mais fraco de nossa alma, o menos virtuoso, ele vai se tornar o mestre de todo o resto de nossa alma. Esse ponto mais desprovido de virtude, o mais arruinado pelas nossas más inclinações é justamente o nosso defeito dominante, que é também a raiz, a causa de muitos outros pecados. Esse defeito dominante pode ser muito diverso segundo cada pessoa: o orgulho, a vaidade, a sensualidade, a impureza, a falta de modéstia, o respeito humano, o apego aos bens desse mundo, o apego às honras ou à glória desse mundo. Ele pode ser a preguiça, sobretudo a preguiça espiritual, a falta de espírito sobrenatural, a falta de esperança, a inconstância, o espírito mundano, a cólera, etc…

É fácil ver a importância de combater nosso defeito dominante e isso por duas razões principais. Primeiramente, porque é do defeito dominante que nos vêm os maiores perigos para a nossa alma e as mais graves ocasiões de pecado. Como dissemos, ele é a raiz para vários outros pecados. Segundo, podemos ver a importância de combater o defeito dominante pelo fato de que, uma vez vencido o inimigo mais terrível, os inimigos mais fracos serão facilmente derrotados por nossa alma, que se tornou mais forte em razão da primeira vitória. Devemos agir como o Rei da Síria na guerra contra Israel. Esse Rei ordenou aos seus soldados que combatessem unicamente contra o Rei de Israel, prometendo que a morte do Rei inimigo daria uma vitória fácil sobre o resto do exército israelita. Foi exatamente o que aconteceu: tendo morrido o rei de Israel, todo o exército cedeu e a guerra terminou imediatamente. De maneira semelhante, caros católicos, será muito mais fácil vencer nossos outros defeitos quando tivermos vencido o nosso defeito dominante.

Para que sejamos vitoriosos nesse combate, é preciso, todavia, seguir o conselho da Igreja. A vitória sobre o nosso defeito dominante não ocorre sem os sofrimentos, sem as cruzes, sem as privações. É impossível vencê-lo sem a mortificação, sem a penitência. Do mesmo modo, sem a oração – sem muita oração – é igualmente impossível vencê-lo e até mesmo começar a batalha, pois é Deus que nos dá a força para combater e é Deus que nos dá, em última instância, a vitória. Sem Ele, mais uma vez, nada podemos fazer. Finalmente, é a caridade, a vontade de servir Deus, infinitamente bom e amável, que deve nos animar e nos dispor ao combate. São a cruz e a oração simples – mas eficaz – do cego que nos são lembradas pelo Evangelho. É a caridade – absolutamente necessária – que nos lembra São Paulo no sublime elogio da caridade. Mas para não se enganar a respeito de seu próprio defeito dominante, é necessário pedir o auxílio de Deus, para que Ele mostre qual é esse defeito e convém pedir conselho a um padre bom que conheça sua alma.

Se, caros católicos, conseguirmos vencer ou ao menos começar uma batalha séria contra nosso vício dominante – porque às vezes é preciso muito tempo para vencê-lo, como foi o caso, por exemplo de São Francisco de Sales com a ira – o caminho da santidade estará bem traçado, pois dessa forma cortamos o mal pela raiz, cortamos o mal em sua causa e evitamos todos os frutos ruins, que são os pecados. Com essa má árvore cortada, poderemos praticar com facilidade e alegria a virtude e o bem, avançando no caminho da perfeição.

Em todo caso, caros católicos, durante a Quaresma, não esqueçam nem um só desses três elementos: a penitência, a oração e a caridade. Com eles teremos uma Quaresma com frutos abundantes e duradouros porque teremos avançado em direção à vida eterna, satisfazendo por nossos pecados e nos dispondo à graça. Sem esses elementos, nossa Quaresma até poderá produzir alguns frutos, mas eles permanecerão superficiais e passageiros. Portanto: a cruz, a oração, a caridade. Isso é o resumo do Evangelho, o resumo da vida de Nossa Senhor Jesus Cristo. Deve ser também o resumo de nossas vidas.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre a Bondade Divina

Sermão para a Festa de São Cirilo de Jerusalém
09 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“O homem, tendo sido honrado por Deus, não compreendeu e comparou-se aos asnos tolos e fez-se semelhante a eles.” (Salmo 48, texto da vulgata)

Nestes dias de carnaval, nestes dias em que a bondade do Sagrado Coração de Jesus, em que a sua solicitude para conosco, em que a seu amor infinito é desprezado, nós temos o dever de buscar consolar o Sagrado Coração de Jesus, reparando pelas abominações cometidas nesses dias e também pelos nossos próprios pecados. É nosso dever fazer companhia ao Sagrado Coração de Jesus, vigiando com Ele, sofrendo com Ele, rezando com Ele. Se para muitos – muitos inclusive que dizem professar a religião católica – esses são dias de pecado, de atos viciosos, de desprezo ao amor divino e de ofensa à bondade e à majestade divinas. Se muitos zombam, nesses dias, de Deus e de sua misericórdia, e se muitos amam as coisas desse mundo – em particular a impureza – até o desprezo de Deus, para nós, ao contrário, esses dias são dias de graça, dias de misericórdia. São dias que Deus nos concede para satisfazer pelas nossas próprias faltas e pelos dos outros. São dias em que, acompanhando o Sagrado Coração de Jesus, traído pelos homens, coroado de espinhos, flagelado, crucificado e transpassado pela lança, devemos buscar formar com Nosso Senhor Jesus Cristo, um só coração. Um coração que deseje as mesmas coisas que Ele e que rejeite as mesmas coisas que Ele.

Só podemos avaliar com clareza as dimensões dos crimes que se cometem durante o carnaval, só podemos ter uma pálida noção da maldade dos homens nesses dias, só podemos ter uma pálida idéia da intensidade e da malícia das ofensas feitas a Deus nesses dias, se compreendemos a intensidade e a bondade do Sagrado Coração de Jesus, se compreendemos o fogo imenso da caridade que arde em seu Coração. Os profetas do Antigo Testamento, com frequência agiam assim, a fim de amolecer os corações endurecidos dos homens: por um lado, eles lembravam aos homens todos os benefícios divinos feitos ao povo de Israel e, por outro, ameaçavam com os devidos castigos, em particular com o inferno. Trataremos hoje, nessa primeira Missa e nessa primeira Bênção do Santíssimo, com intenção reparadora pelos pecados cometidos durante o carnaval, de considerar a bondade divina, todo o bem que Deus nos fez gratuitamente, por pura liberalidade, pois não temos direito a tantos e tantos benefícios.

O primeiro benefício que Deus nos fez foi evidentemente nos criar. Com frequência nos esquecemos disso. Não tínhamos nenhum direito à existência, não tínhamos nenhum direito, se posso dizer assim, a passar do nada para vida. E Deus não só nos dá a vida como nos conserva no ser a cada instante de nossa existência. Nesse exato momento, só estamos aqui porque Deus pensa em nós e quer que existamos. E Deus não nos deu qualquer ser. Deus nos deu uma um corpo e uma alma racional. Deus nos deu a inteligência e a vontade, para conhecer a verdade e amá-la. Para conhecer a verdade, quer dizer, para conhecê-lo, pois é ele a Verdade e para amar essa verdade. Só com isso, nossa honra já é grande.  Mas o amor divino não se contentou com isso. O Amor divino nos elevou à vida sobrenatural, Deus quis que participássemos de sua própria vida, Deus quis nos fazer semelhante a Ele. E o que Deus recebeu em troca? A ofensa, a ingratidão, a indiferença, a zombaria. O homem foi elevado a uma alta honra, mas não compreendeu e preferiu agir segundo a sua própria vontade, seguindo suas paixões desordenadas. O homem foi elevado à participação na vida divina, mas recusou tal participação e amou as criaturas até o desprezo de Deus.

Tendo cometido uma ofensa infinita, o homem estava condenando a viver separado de Deus. O amor divino, porém, desejando ardentemente nosso bem, resolveu vir ao mundo para nos salvar. E toda a história da humanidade se resume a isso: à preparação para a encarnação do Verbo, a vida do Verbo nessa Terra e as consequências da vida do Verbo entre os homens, em particular as consequências de seu sacrifício na Cruz. O amor de Deus para com os homens é tanto que Ele não poupou o seu próprio Filho. Deus assim amou os homens, ao ponto e lhes dar seu próprio Filho, para que possam se salvar. Vejamos a bondade divina.

No Antigo Testamento, Deus lembra aos israelitas todos os seus benefícios ao longo da história deles, a fim de suscitar em seus corações, a gratidão e a caridade. Em terras do Egito, ele fez grandes prodígios. O mar foi dividido para lhes dar passagem. De dia, ele os conduziu por trás de uma nuvem, e à noite ao clarão de uma flama. Rochedos foram fendidos por ele no deserto, com torrentes de água os saciou. Da pedra fizera jorrar regatos, e manar água como rios. Ele ordenou às nuvens do alto, e abriu as portas do céu. Fez chover o maná para saciá-los, deu-lhes o trigo do céu. Pôde o homem comer o pão dos fortes, e lhes mandou víveres em abundância. Fez chover carnes, então, como poeira, numerosas aves como as areias do mar, as quais caíram em seus acampamentos, ao redor de suas tendas. Delas comeram até se fartarem, e satisfazerem os seus desejos. Malgrado tudo isso, persistiram em pecar, não se deixaram persuadir por seus prodígios. Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram! Esqueceram a obra de suas mãos, no dia em que os livrou do adversário, quando operou seus prodígios no Egito e maravilhas nas planícies de Tânis; quando converteu seus rios em sangue, a fim de impedi-los de beber de suas águas; quando enviou moscas para os devorar e rãs que os infestaram; quando entregou suas colheitas aos pulgões, e aos gafanhotos o fruto de seu trabalho; quando arrasou suas vinhas com o granizo, e suas figueiras com a geada; quando extinguiu seu gado com saraivadas, e seus rebanhos pelos raios; quando descarregou o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, um esquadrão de anjos da desgraça. Matou os primogênitos no Egito, enquanto retirou seu povo como ovelhas, e o fez atravessar o deserto como rebanho. Conduziu-o com firmeza sem nada ter que temer, enquanto aos inimigos os submergiu no mar. Ele os levou para uma terra santa, até os montes que sua destra conquistou. Ele expulsou nações diante deles, distribuiu-lhes as terras como herança, fez habitar em suas tendas as tribos de Israel.

E diante de tantos benefícios – só citamos alguns – o que fizeram os judeus? Eles esqueceram as obras de Deuss, e as maravilhas operadas ante seus olhos. Entretanto, continuaram a pecar contra ele, e a se revoltar contra o Altíssimo no deserto. Provocaram o Senhor em seus corações, reclamando iguarias de suas preferências. Tentaram a Deus e provocaram o Altíssimo, e não observaram os seus preceitos. Deus fez tudo por eles. Eles nada fizeram por Deus.

Ora, se Deus reclama e pune a ingratidão dos judeus, diante desses benefícios, quanto maior será a dor do Sagrado Coração diante de nossos pecados e diante de nossa ingratidão, pois os benefícios que nos foram dados pelo Sagrado Coração são infinitamente superiores aos dados ao povo eleito. O Verbo veio ao mundo, padeceu desde o primeiro momento de sua encarnação e de seu nascimento. Fugiu para o Egito, levou trinta anos de uma vida humilde e escondida nos mais árduos trabalhos. Padeceu fome e sede, não tinha onde repousar a cabeça. Foi flagelado, foi cuspido e zombado. Foi coroado de espinhos, carregou sua caiu por terra três vezes. Foi crucificado, morto. Teve o Coração transpassado cruelmente por uma lança. Foi sepultado. Foi rejeitado por aqueles que ele veio salvar. Ensinou-nos toda a Verdade, fundou a Igreja, institui os sacramentos. Desce todo dia sobre os altares em Corpo, Alma, Sangue e Divindade para se entregar a nós. Perdoa nossos pecados na confissão. Deu-nos Nossa Senhora por mãe. E fez tudo isso, apesar de sermos pecadores. Que grandeza da caridade divina. E nós? Nós fomos elevados a uma sublime honra, a ponto do homem-Deus sofrer para nos salvar e nós não entendemos e preferimos nos assemelhar aos asnos tolos, pois quando pecamos nos assemelhamos aos animais, que não pensam e são incapazes de reconhecer a lei natural e a lei divina. Preferimos não seguir as leis de Deus, para seguir nossas irracionalidades, para nos tornar como os animais.

É exatamente o que ocorre de forma mais intensa no carnaval. O homem não entende a honra à qual foi elevado e se faz semelhante aos animais, pelos pecados, sobretudo pelos pecados de impureza, que de fato rebaixam o homem ao estado de animal. O homem prefere uma satisfação instantânea à vida eterna. O homem prefere perder o céu e dirigir-se ao inferno a agir conforme as leis divinas, conforme as leis naturais, conforme, portanto, àquilo que é o melhor para ele conforme com sua natureza racional. O homem prefere um instante ou uma vida passageira de prazeres e diversões desordenadas à vida eterna, à felicidade perfeita, à contemplação da verdade. O homem prefere flagelar novamente Nosso Senhor, coroá-lo de espinhos, flagel-alo, cuspir sobre o crucificado. O homem prefere aumentar o peso da cruz de Cristo. Prefere derrubá-lo e renovar a dor de todas as suas chagas, abertas para nos salvar. Ele prefere crucificar seu divino Salvador, ele prefere abrir o lado do Verbo encarnado e feri-lo diretamente em seu Sagrado Coração.

Esse Sagrado Coração continua sendo fonte de misercórdia e de caridade. E ele o será até o final da vida de cada homem. Mas um dia essa vida acaba e não sabemos quando, e se seguirá o juízo. E se o homem não se arrependeu sinceramente de seus crimes, o juízo será de condenação, pois ninguém zomba de Deus impunemente. Essas satisfações instantâneas e esses prazeres desordenados e irracionais, que assemelham o homem aos animais brutos se transformarão em sofrimento eterno. E serão condenados pelo amor divino, ou melhor, pela recusa do amor divino. Não poderão recorrer a esse amor, porque foram condenados justamente porque o recusaram.

Tantos benefícios divinos e tantos desprezos. Tanto amor e tanta indiferença. Tanta bondade e tanta malícia. Aproveitemos esses dias para acompanhar o Sagrado Coração de Jesus em seus sofrimentos, em sua agonia, em seu Coração ferido pela lança afiada dos pecados do carnaval. Acompanhemos Nosso Senhor com práticas de devoção, com mortificações, por menores e simples que sejam. Só a vinda a essa Missa nesses dias já é, talvez, para muitos um ato de generosidade. Devemos fazer um esforço. Alguns se dedicam tanto ao mal que passam dias sem dormir para cometer iniquidades. Dediquemo-nos um pouco ao bem, a Deus, ao Sagrado Coração de Jesus. Acompanhemos Nosso Senhor Jesus Cristo para que nosso coração possa formar com o dEle um só Coração, no sentido de amarmos Deus e o próximo, e a virtude e de detestarmos, o pecado, o vício e tudo o que conduz ao pecado. Não fiquemos indiferentes diante de tantos benefícios e de tanta caridade. Não fiquemos indiferentes diante dos sofrimentos do Sagrado Coração. Fomos elevados a uma honra sublime, a honra de filhos adotivos de Deus. Devemos compreendê-la e agir segundo essa filiação. É essa a nossa honra, a nossa glória, a nossa finalidade nesse mundo e a nossa alegria. Devemos nos fazer semelhantes não aos animais brutos, mas a Deus, nosso Pai.

Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao voso.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A Ociosidade e a Preguiça Espiritual

Sermão para o Domingo da Septuagésima
27 de janeiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

Gostaria de fazer um breve comentário sobre o tempo da Septuagésima, antes de passar ao Evangelho. Caros católicos, entramos hoje no tempo da Septuagésima, que compreende os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima, precedendo a Quaresma. O ano litúrgico começou com o Advento, depois passamos pelo tempo do Natal, que se estende até o dia 13 de janeiro, antiga oitava da Epifania. Em seguida, vem o tempo depois da Epifania, que pode ser mais ou menos longo em função da data da Páscoa. A brevidade do tempo depois da Epifania será recompensada no final do ano litúrgico, em que alguns dos domingos depois da Epifania omitidos no início do ano são retomados, como vimos em novembro. A septuagésima manifesta a bondade da Igreja para com os homens e sua sabedoria. Esse tempo litúrgico que começamos hoje é a transição para a quaresma, a fim de que a passagem para as austeridades não se faça de forma brusca, mas de modo calmo e sereno. São, portanto, duas semanas e meia para que possamos nos dispor bem para o tempo da quaresma. Essa transição está bem marcada na liturgia tradicional, sempre mestra de espiritualidade e doutrina. Assim, os paramentos são da cor roxa, cor penitencial. O Gloria já não é mais cantado, o Alleluia também não. Por outro lado, o órgão ainda é permitido, as flores também são permitidas (embora não as tenhamos hoje). Trata-se, portanto, de preparar, desde já, nosso espírito para a prática mais perfeita e intensa da penitência, da oração e das boas obras que devemos fazer na Quaresma. É o que veremos no Evangelho de hoje que nos prepara para a quaresma ao nos prevenir contra a ociosidade e o mau emprego de nosso tempo.

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Por que estais aqui todo o dia ociosos? … Ide vós também para a minha vinha.

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[Instrução] Sobre a Modéstia

A Modéstia na Igreja
Padre Daniel Pinheiro

 

A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens. Filipenses IV, 5

I – Em relação à pureza:

1) As vestes devem cobrir tudo o que está entre os joelhos e os ombros, incluindo joelhos e ombros, e em qualquer posição (de pé, sentado, ajoelhado). As vestes devem, portanto, possuir mangas e devem ser sem decotes.

2) As vestes não devem ser transparentes nem em tom de pele.

3) As vestes não devem ser apertadas ou coladas ao corpo.

Essas regras se aplicam a homens e mulheres, mas, sobretudo, às mulheres, dada a maior fraqueza do homem nesse ponto. É preceito do Apóstolo São Paulo: “Do mesmo modo orem também as mulheres em traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade […] como convém a mulheres que fazem profissão de piedade” (1Tim. II, 9 e 10).

Essas são as regras mínimas.

Ainda hoje no Vaticano é proibida a entrada de pessoas que estejam com joelhos ou ombros descobertos. Não há diferença essencial entre a Basílica de São Pedro e a mais singela Igreja: o mesmo respeito é, portanto, devido.

As mulheres evitem, sobretudo na Igreja, roupas mais convenientes ao sexo masculino (calças). Usem saias e vestidos: também isso é parte da modéstia.  Essas regras se aplicam em todo lugar, e com mais razão, portanto, na Igreja.

Resumindo: cubram-se os joelhos em qualquer posição, cubram-se os ombros, cubra-se tudo o que se encontra entre os dois. As mulheres usem saias e vestidos.

II – Em relação às circunstâncias

A roupa deve ser adequada àquilo que há de mais importante na face da Terra: a Casa de Deus, sobretudo quando nela se realiza o Santo Sacrifício da Missa.  A pessoa deve, então, vestir-se com dignidade para ir à Missa, evitando vestes demasiado informais.

Particularmente, sejam abolidas as vestes que contenham desenhos ou alguma mensagem escrita, mesmo para as crianças. Também não sejam usadas roupas com personagens de desenho, com frases escritas, camisetas de times de futebol, calças rasgadas, bermudas. Nada disso condiz com a santidade e dignidade do lugar. Não se deve, porém, cair no erro oposto. Dignidade com simplicidade e sem exageros.

Convém muitíssimo que as mulheres usem véu enquanto estão na Igreja, em particular durante os Sacramentos. São Paulo o adverte em sua Primeira Epístola aos Coríntios, Capítulo 11.

Dever do Sacerdote

É dever do sacerdote, explicitado nos mais diversos textos da Santa Sé e dos Bispos, ensinar a modéstia e exortar os fiéis a ela. Também é seu dever não administrar os sacramentos àqueles que não se apresentam vestidos modestamente para receberem as graças da Igreja.

A Modéstia

A modéstia no vestir é a virtude derivada da temperança que guarda a devida ordem da razão em nosso aparato exterior. Ela deve ser observada principalmente na Igreja, Templo do Altíssimo. As nossas vestes mostram quem nós somos, a nossa pureza e o grau de importância que atribuímos a um determinado local, a uma determinada pessoa, a uma determinada atividade. Assim, a modéstia deve estar de acordo com a pureza e com as circunstâncias em que se encontram as pessoas.

A modéstia no vestir diz respeito, antes de tudo, à pureza. A modéstia no vestir evita o próprio pecado – a pessoa não é motivo de escândalo para outras – e evita ao mesmo tempo o pecado do próximo. Trata-se, portanto, de caridade para consigo mesmo e para com o próximo. Para observar a modéstia no vestir, é preciso que a veste esconda mais do que mostre.

Embora haja certa variação em relação às épocas e localidades, há um limite a partir do qual uma veste será sempre imodesta e causará danos para os indivíduos e para a sociedade. Para esse tipo de veste (roupas de banho, minissaias, etc.) dizem os moralistas, é inválida a lei de que o que é comum e habitual não causa paixões. Pio XII dizia que “as vestes devem ser avaliadas não segundo a estimação de uma sociedade em decadência, mas segundo as aspirações de uma sociedade que preza pela dignidade e pela seriedade dos costumes.” Dizia também que “a moda não pode jamais ser uma ocasião próxima de pecado” (Discurso aos participantes do I Congresso de Alta Moda, 8/11/57).

Esse limite é posto pelos joelhos e os ombros, que devem estar sempre cobertos, assim como deve estar coberto tudo o que se encontra entre os dois.

É necessária a modéstia não porque o corpo seja mau em si, mas justamente por sua nobreza, porque ele é templo do Espírito Santo e por causa das feridas do pecado original. Adão e Eva se cobriram depois do pecado original e Deus os vestiu ainda mais: “Fez também o Senhor Deus a Adão e a sua mulher umas túnicas de peles e os vestiu” (Gen. III, 21).

No entanto, tal modéstia não consiste unicamente em não ser motivo de pecado para outros, mas também em vestir-se conforme ao próprio estado, às circunstâncias, ao grau de formalidade do lugar, da atividade e levando em conta a dignidade da pessoa com quem se está.

São necessárias regras concretas, sobretudo hoje em que a onipresença de vestes imodestas impede o bom-senso de discernir o que é realmente modesto ou não. Regras abstratas conduziram ao estado de coisas em que nos encontramos hoje. Como já dito, o costume não pode tornar modesta uma veste em si imodesta. Ademais, ninguém é um bom juiz da própria causa, particularmente quando se trata de modéstia.

No Ato de Desagravo ao Sagrado Coração, redigido sob as ordens do Papa Pio XI (AAS 20, p. 183, 1928), nós dizemos: “De todos estes tão deploráveis crimes, Senhor, queremos nós hoje desagravar-vos, mas particularmente da licença dos costumes e imodéstias do vestido, de tantos laços de corrupção armados à inocência […].”

Possamos recitar tal ato com sinceridade, começando por nos vestir modestamente. Deus há de recompensar os esforços dos que se vestem modestamente e evitam assim o próprio pecado e o pecado do próximo. Os exemplos de Nossa Senhora, Virgem Puríssima, e de São José, seu castíssimo esposo, devem ser seguidos por aqueles que amam a Deus sobre todas as coisas.