[Sermão/Carnaval] As ofensas ao Imaculado Coração de Maria

Sermão na Festa dos Sete Fundadores dos Servitas de Maria
11 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

A providência quis que passássemos esse Carnaval na companhia de Nossa Senhora. Ontem tivemos a festa de Lourdes, hoje temos a festa dos sete fundadores da ordem dos Servos de Maria, ordem que possui especial devoção a Nossa Senhora das Dores. Essas duas lembranças marianas durante esse período do carnaval são bem importantes. Consideremos ambas brevemente.

Nossa Senhora de Lourdes, como Nossa Senhora de Fátima depois dela, nos exorta à penitência. Lembro que devemos considerar com seriedade essas aparições aprovadas pela Igreja, ainda que não sejam matéria de fé e que, ao contrário, para o bem da nossa alma, devemos nos afastar de aparições não aprovadas, como todas as atuais. Nossa Senhora de Lourdes nos exorta, então, à penitência, como dizíamos. Essa penitência tem aqui dois sentidos, como já dissemos no advento, se vocês se lembram bem.  O primeiro e mais importante sentido é o de arrependimento pelos pecados, com verdadeira dor espiritual e o firme propósito de não mais voltar a pecar. Essa penitência leva a uma boa confissão. A irmã Lúcia, vidente de Fátima, escreveu: “muitos colocam o sentido da palavra penitência nas grandes austeridades… desanimando”. O principal sentido de penitência que Nossa Senhora quer e que Deus quer, e que devemos buscar,  nesse período de carnaval e na Quaresma que iniciará em breve, é a detestação dos nossos próprios pecados, com o propósito de não mais cometê-los.

Todavia, esse sentido de penitência não exclui a penitência no sentido de mortificação exterior, como satisfação pelos nossos próprios pecados e pelos pecados dos outros. Aliás, ao contrário, pois um verdadeiro arrependimento leva ao desejo de satisfação. É preciso que ofereçamos a Deus algo que possa ser agradável a Ele mais do que o pecado o ofendeu. Um dos meios de fazer isso são as mortificações exteriores unidas necessariamente ao sacrifício de Cristo, claro. Elas são necessárias para satisfazer pelo pecado, mas também para obter graças, vencer-se a si mesmo e para nos incorporar a Cristo, que é Cristo crucificado. E essas obras satisfatórias e meritórias nós podemos aplicá-las aos outros, em virtude do dogma da comunhão dos santos.

Consideremos brevemente, agora, Nossa Senhora das Dores. As sete espadas que transpassam o coração de Nossa Senhora das Dores remetem aos maiores sofrimentos dela durante sua vida, mas indicam também que ela foi, depois de seu Filho, a pessoa que mais sofreu nesse mundo, pois o número sete representa a plenitude. Nossa Senhora sofreu com os sofrimentos de seu Filho. Ela sofreu porque seu Coração é praticamente um só com o de seu Filho. Eles amam a mesma coisa: a glória de Deus. Eles repudiam a mesma coisa: o pecado. Assim, Nossa Senhora, ao ver seu Filho inocente sofrer pelo pecado, sofria junto com Ele, pela maldade dos homens. Quando se ofende o Filho, também a Mãe é ofendida. Portanto, pelos pecados do Carnaval, são os Corações de Jesus e Maria que são desprezados e ofendidos. Como se não bastasse ofender o Coração Amantíssimo de Nosso Salvador, também se ofende o Coração de Maria, nossa Mãe. Pois mãe é aquela que gera e, sem dúvida, é pela mediação de Nossa Senhora que somos gerados para a vida da graça. É por Ela que Cristo veio ao mundo, é por Ela que todas as graças passam, vindas do Sagrado Coração de Jesus. A graça é como a água. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte. O Imaculado Coração de Maria é o aqueduto. Que tristeza: ofender o Coração de nossa Mãe, aquela que quer unicamente o nosso bem, a nossa salvação. Quanta ingratidão.

Sigamos o conselho de Nossa Senhora de Lourdes. Penitência como arrependimento e penitência como satisfação. Apliquemo-nos a não acrescentar mais espadas no Coração de Maria. E busquemos fazer nosso coração um só coração com o de Nossa Senhora e o de Nosso Senhor. É nisso que consiste nossa verdadeira felicidade.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre as consequências da luxúria

Sermão na Festa da Aparição da Virgem Maria em Lourdes
11 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No sábado passado consideramos a bondade divina, e alguns dos benefícios que nos ela nos fez, desde a nossa criação até a honra a que nos elevou, a honra de filhos adotivos de Deus, a honra de participar da própria vida da Santíssima Trindade, indo até a morte do Verbo Encarnado da Cruz. Hoje, ao contrário, vamos considerar as consequências da luxúria, ou seja, as consequências desse pecado capital – o principal cometido durante o carnaval – que se opõe ao sexto e ao nono mandamentos.

Um pecado capital é na verdade um vício. Um pecado capital não é uma ação isolada. O pecado capital é uma disposição bem enraizada na alma para operar mal, para agir contra a razão e contra Deus. Portanto, se alguém peca uma vez contra o sexto mandamento, peca gravemente, mas não está ainda atingido pelo vício, pois um ato só não cria uma disposição bem enraizada na alma. Se a pessoa comete várias vezes os mesmos pecados, ela terá em sua alma uma disposição para cometê-los, ela terá, então, um vício. O vício ou um pecado capital não é um pecado em si, mas é uma inclinação forte para cometer certo tipo de pecado. E certos vícios são chamados de vícios capitais ou pecados capitais justamente porque são a cabeça de muitos outros pecados, gerando-os com grande facilidade. Portanto, quando pecamos, é preciso que nos corrijamos imediatamente, e se se trata de pecado grave, confessando-nos. Primeiro, para obter o perdão divino, recobrar a graça e voltar a merecer o céu. Segundo, para que não adquiramos o vício relativo a esse pecado, pois vencer um vício é, evidentemente, muito mais difícil.

O pecado ou vício capital de que tratamos hoje é o da luxúria. É o principal do carnaval. E não somente do carnaval. Hoje, infelizmente, em nossa sociedade ele é onipresente. A luxúria diz respeito à deleitação venérea desordenada. Diz respeito, portanto, à deleitação venérea desordenada – aquela que se opõe à razão, à lei natural e à lei divina – em atos, pensamentos consentidos ou olhares consentidos. Ela se refere, portanto, a essa deleitação venérea fora do matrimônio, ou dentro dele, mas contra a finalidade primária do matrimônio, que é a procriação.

Como dissemos, o pecado capital recebe esse nome justamente porque ele é a cabeça de várias outras desordens. São gravíssimas as desordens geradas pela luxúria. Para compreender como essas consequências ocorrem, é preciso ter em mente que a alma humana é una e que, portanto, quando uma de nossas faculdades se aplica com veemência a alguma coisa, as outras faculdades não podem se aplicar ao seu próprio objeto. Por isso, alguém que estuda ouvindo musica, ou ouvirá a música, ou estudará ou fará as duas coisas mal feitas, pois a alma sendo una, não pode se aplicar com veemência a duas coisas distintas. Assim, é óbvio que quando a alma está manchada com o vício da luxúria, as faculdades superiores – a inteligência e a vontade – são gravemente prejudicadas, pois as faculdades inferiores se aplicam com veemência ao seu objeto de forma contrária à razão.

Vejamos, então, as filhas da luxúria, segundo São Tomás. A primeira delas, na ordem da inteligência, é a cegueira do espírito. A alma passa a julgar as coisas não mais pela razão, e tais como elas são, mas segundo a paixão, segundo suas inclinações. Isso a impede de conhecer a verdade, ao menos plenamente ou como poderia conhecê-la. A consequência é o erro na apreciação da realidade. Daí a cegueira diante das realidades eternas e mesmo a perda do bom senso. A pessoa passa a julgar as coisas como ela quer e não como as coisas são. A pessoa já não consegue discernir o bem do mal. Por isso, o Profeta Daniel diz a um dos velhos que cobiçaram Suzana: A formosura seduziu-te e a concupiscência perverteu-te o coração.

A segunda filha da luxúria é a precipitação. A precipitação consiste em agir segundo o ímpeto da vontade ou da paixão, e não sob a direção da razão que busca agir somente após a devida consideração, reflexão e ponderação, considerando a realidade das coisas, considerando a própria experiência, a experiência dos antigos, o ensinamento dos outros, etc. A precipitação despreza tudo isso para agir sob o ímpeto da paixão ou da vontade. O homem precipita a sua ação antes de considerar todas essas coisas.

A terceira filha da luxúria é a inconsideração, pela qual a pessoa não consegue julgar corretamente os meios que deve empregar para agir bem.

A quarta filha da luxúria é a inconstância. Apegada às deleitações desordenadas, a alma pode até chegar a reconhecer o que é bom, ela considera o que deve fazer e se propõe a fazê-lo, mas não passa à ação, impedida pelo ímpeto da concupiscência desordenada, que lhe tira o vigor para agir bem.

A quinta filha da luxúria, agora na ordem da vontade, é o amor desordenado de si mesmo, pois a deleitação irracional da luxúria é um egoísmo. A pessoa se opõe a Deus, se opõe ao próximo, se opõe à sociedade, para ter uma satisfação instantânea.

A sexta filha é o ódio a Deus, por oposição ao amor desordenado de si. A pessoa quer tanto cometer esses pecados que ela passa a odiar Deus, que a proíbe de fazer tais coisas.

A sétima filha é o apego à vida presente, na qual a pessoa quer permanecer a todo custo para continuar com suas deleitações desordenadas.

A oitava filha, por oposição, ao apego à vida presente é o desespero com relação à vida futura, pois a pessoa afetada demasiadamente pelas deleitações carnais desordenadas não cuida das coisas espirituais, mas se aborrece com elas e desespera de sua salvação.

Poderíamos, ainda, citar outras filhas da luxúria que São Tomás não cita. Poderíamos citar a efeminização da sociedade, no sentido técnico da palavra, que significa o fato de seguir as suas paixões sem combatê-las, formando nas pessoas um caráter fraco, e nos homens um caráter sem virilidade alguma, pois é preciso ter em mente que a virilidade do homem consiste justamente no combate às paixões desordenadas, em particular no combate à luxúria. O homem verdadeiramente viril é um homem casto. O homem que não é casto, por mais que não seja homossexual é efeminado, no sentido em que dissemos. A luxúria gera também o assassinato: o aborto. E leva à eutanásia. Se a pessoa já não pode gozar a vida, melhor que morra. A luxúria bestializa o homem.

Podemos ver, então, porque a luxúria é um pecado capital. Nós vemos hoje onipresentes todas as filhas da luxúria em nossa sociedade. A cegueira da mente, pela perda do bom senso de nossos contemporâneos, pela perda do julgamento do que é certo e do que é errado, a disseminação do erro em todas as esferas. A falta total de reflexão de nossos contemporâneos, que agem por ímpeto, por paixão, por sentimento, sem pensar na sabedoria dos antigos, sem pensar, em particular, naquilo que a Igreja e os Santos ensinam. Podemos ver também que quando alguém chega a refletir, não consegue levar em conta os verdadeiros elementos, em particular a vida sobrenatural, e não consegue fazer um juízo correto de como deve agir. Vemos a falta de determinação das pessoas em suas decisões, a sua falta de constância em fazer o verdadeiro bem e perseverar neles. Vemos também o egoísmo reinante e vemos o ódio crescente a Deus e a sua Igreja, que combate justamente contra esse vício. Muitas das leis iníquas, opostas à lei de Deus e sua Igreja têm sua origem próxima nesse vício. Vemos, claramente, o apego à vida presente e a onipresente necessidade de curtir a vida e o aborrecimento total para com as coisas do alto. Vemos o desespero reinante em nossa sociedade, que tenta a todo custo prolongar ao máximo a vida dos homens aqui na terra, esquecendo que nossa pátria é o céu.

Alguém que possui o pecado capital da luxúria deve combatê-lo. Antes de tudo, rezando bastante, tendo uma vida de oração. É preciso rezar quando vêm a tentação, as imaginações ruins, os pensamentos ruins. É preciso, nesse momento, desviar o pensamento para outra coisa boa, lícita, se possível santa, que possa ocupar inteiramente nossa imaginação e nosso pensamento. Em seguida, é preciso evitar as ocasiões de pecado, as situações, os ambientes, as pessoas que levam a cometer tais pecados. Em particular, é preciso ter extremo cuidado com os meios de comunicação modernos: internet, televisão. Só se deve acessar internet quando há um objetivo bem definido e deve-se sair quando o atingimos. Ficar navegando à toa e sem rumo dificilmente acaba bem. É preciso mortificar-se, mesmo em coisas lícitas, pois isso facilitará muito evitar coisas ilícitas. É preciso mortificar os sentidos, sobretudo os olhos, tentando mantê-los abaixados quando saímos de casa e evitando a curiosidade, evitando ver tudo o que acontece ao nosso redor. Devemos ser moderados e mortificar-nos na comida e no beber. O comer pertence, como a deleitação venérea, ao apetite concupiscível, de forma que a desordem em um provoca a desordem no outro, enquanto a virtude em um favorece a virtude no outro. É preciso fazer atos de fé, de esperança e de caridade. Aquele que tem esse vício não deve desesperar, mas deve empregar todos esses meios com verdadeira determinação. É preciso frequentar com assiduidade os sacramentos da comunhão e da penitência para evitar as quedas futuras. Se por fraqueza cair, é preciso buscar se confessar o mais rápido possível, com verdadeira contrição, bem entendido. É preciso considerar as consequências desse pecado: a perda do céu, o merecimento do inferno, a ofensa infinita a Deus. Tudo isso por um instante de satisfação.  Nessa matéria, o ser humano é muito fraco. Se ele confia demais em si mesmo, terminará caindo. É preciso desconfiar de si mesmo, sobretudo nessa matéria, empregando os meios mencionados e confiando muito em Deus, rezando bastante. E, claro, é indispensável uma terna devoção a Nossa Senhora.

São graves as consequências da luxúria. Uma sociedade, como a nossa, em que a luxúria é rainha e que favorece sobremaneira a luxúria está destinada à ruina. Nenhuma sociedade pode se sustentar quando está fundada no erro, na precipitação, na inconsideração, na inconstância, no amor a si mesma, no ódio a Deus, no apego à vida presente e no desespero das coisas do alto. Para chegarmos a uma sociedade inimiga de Deus, bastou ao demônio favorecer a luxúria.

Portanto, o carnaval destrói a sociedade. Uma sociedade que passa o ano inteiro se preparando para o Carnaval é uma sociedade arruinada. Um carnaval constante como, na verdade, vivemos em nosso país e no mundo todo é a destruição de nossa sociedade. Uma sociedade fundada na areia não pode subsistir. Peçamos a Deus que tenha piedade de nós e de nosso Brasil, para que nosso país volte a cumprir as promessas de seu batismo, feitas quando da vinda dos missionários portugueses. Que nosso Brasil volte a ser a Terra de Santa Cruz. Rezemos à Nossa Senhora de Lourdes, que festejamos hoje e à Nossa Senhora Aparecida.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão/Carnaval] Consideração sobre a Bondade Divina

Sermão para a Festa de São Cirilo de Jerusalém
09 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

“O homem, tendo sido honrado por Deus, não compreendeu e comparou-se aos asnos tolos e fez-se semelhante a eles.” (Salmo 48, texto da vulgata)

Nestes dias de carnaval, nestes dias em que a bondade do Sagrado Coração de Jesus, em que a sua solicitude para conosco, em que a seu amor infinito é desprezado, nós temos o dever de buscar consolar o Sagrado Coração de Jesus, reparando pelas abominações cometidas nesses dias e também pelos nossos próprios pecados. É nosso dever fazer companhia ao Sagrado Coração de Jesus, vigiando com Ele, sofrendo com Ele, rezando com Ele. Se para muitos – muitos inclusive que dizem professar a religião católica – esses são dias de pecado, de atos viciosos, de desprezo ao amor divino e de ofensa à bondade e à majestade divinas. Se muitos zombam, nesses dias, de Deus e de sua misericórdia, e se muitos amam as coisas desse mundo – em particular a impureza – até o desprezo de Deus, para nós, ao contrário, esses dias são dias de graça, dias de misericórdia. São dias que Deus nos concede para satisfazer pelas nossas próprias faltas e pelos dos outros. São dias em que, acompanhando o Sagrado Coração de Jesus, traído pelos homens, coroado de espinhos, flagelado, crucificado e transpassado pela lança, devemos buscar formar com Nosso Senhor Jesus Cristo, um só coração. Um coração que deseje as mesmas coisas que Ele e que rejeite as mesmas coisas que Ele.

Só podemos avaliar com clareza as dimensões dos crimes que se cometem durante o carnaval, só podemos ter uma pálida noção da maldade dos homens nesses dias, só podemos ter uma pálida idéia da intensidade e da malícia das ofensas feitas a Deus nesses dias, se compreendemos a intensidade e a bondade do Sagrado Coração de Jesus, se compreendemos o fogo imenso da caridade que arde em seu Coração. Os profetas do Antigo Testamento, com frequência agiam assim, a fim de amolecer os corações endurecidos dos homens: por um lado, eles lembravam aos homens todos os benefícios divinos feitos ao povo de Israel e, por outro, ameaçavam com os devidos castigos, em particular com o inferno. Trataremos hoje, nessa primeira Missa e nessa primeira Bênção do Santíssimo, com intenção reparadora pelos pecados cometidos durante o carnaval, de considerar a bondade divina, todo o bem que Deus nos fez gratuitamente, por pura liberalidade, pois não temos direito a tantos e tantos benefícios.

O primeiro benefício que Deus nos fez foi evidentemente nos criar. Com frequência nos esquecemos disso. Não tínhamos nenhum direito à existência, não tínhamos nenhum direito, se posso dizer assim, a passar do nada para vida. E Deus não só nos dá a vida como nos conserva no ser a cada instante de nossa existência. Nesse exato momento, só estamos aqui porque Deus pensa em nós e quer que existamos. E Deus não nos deu qualquer ser. Deus nos deu uma um corpo e uma alma racional. Deus nos deu a inteligência e a vontade, para conhecer a verdade e amá-la. Para conhecer a verdade, quer dizer, para conhecê-lo, pois é ele a Verdade e para amar essa verdade. Só com isso, nossa honra já é grande.  Mas o amor divino não se contentou com isso. O Amor divino nos elevou à vida sobrenatural, Deus quis que participássemos de sua própria vida, Deus quis nos fazer semelhante a Ele. E o que Deus recebeu em troca? A ofensa, a ingratidão, a indiferença, a zombaria. O homem foi elevado a uma alta honra, mas não compreendeu e preferiu agir segundo a sua própria vontade, seguindo suas paixões desordenadas. O homem foi elevado à participação na vida divina, mas recusou tal participação e amou as criaturas até o desprezo de Deus.

Tendo cometido uma ofensa infinita, o homem estava condenando a viver separado de Deus. O amor divino, porém, desejando ardentemente nosso bem, resolveu vir ao mundo para nos salvar. E toda a história da humanidade se resume a isso: à preparação para a encarnação do Verbo, a vida do Verbo nessa Terra e as consequências da vida do Verbo entre os homens, em particular as consequências de seu sacrifício na Cruz. O amor de Deus para com os homens é tanto que Ele não poupou o seu próprio Filho. Deus assim amou os homens, ao ponto e lhes dar seu próprio Filho, para que possam se salvar. Vejamos a bondade divina.

No Antigo Testamento, Deus lembra aos israelitas todos os seus benefícios ao longo da história deles, a fim de suscitar em seus corações, a gratidão e a caridade. Em terras do Egito, ele fez grandes prodígios. O mar foi dividido para lhes dar passagem. De dia, ele os conduziu por trás de uma nuvem, e à noite ao clarão de uma flama. Rochedos foram fendidos por ele no deserto, com torrentes de água os saciou. Da pedra fizera jorrar regatos, e manar água como rios. Ele ordenou às nuvens do alto, e abriu as portas do céu. Fez chover o maná para saciá-los, deu-lhes o trigo do céu. Pôde o homem comer o pão dos fortes, e lhes mandou víveres em abundância. Fez chover carnes, então, como poeira, numerosas aves como as areias do mar, as quais caíram em seus acampamentos, ao redor de suas tendas. Delas comeram até se fartarem, e satisfazerem os seus desejos. Malgrado tudo isso, persistiram em pecar, não se deixaram persuadir por seus prodígios. Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram! Esqueceram a obra de suas mãos, no dia em que os livrou do adversário, quando operou seus prodígios no Egito e maravilhas nas planícies de Tânis; quando converteu seus rios em sangue, a fim de impedi-los de beber de suas águas; quando enviou moscas para os devorar e rãs que os infestaram; quando entregou suas colheitas aos pulgões, e aos gafanhotos o fruto de seu trabalho; quando arrasou suas vinhas com o granizo, e suas figueiras com a geada; quando extinguiu seu gado com saraivadas, e seus rebanhos pelos raios; quando descarregou o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, um esquadrão de anjos da desgraça. Matou os primogênitos no Egito, enquanto retirou seu povo como ovelhas, e o fez atravessar o deserto como rebanho. Conduziu-o com firmeza sem nada ter que temer, enquanto aos inimigos os submergiu no mar. Ele os levou para uma terra santa, até os montes que sua destra conquistou. Ele expulsou nações diante deles, distribuiu-lhes as terras como herança, fez habitar em suas tendas as tribos de Israel.

E diante de tantos benefícios – só citamos alguns – o que fizeram os judeus? Eles esqueceram as obras de Deuss, e as maravilhas operadas ante seus olhos. Entretanto, continuaram a pecar contra ele, e a se revoltar contra o Altíssimo no deserto. Provocaram o Senhor em seus corações, reclamando iguarias de suas preferências. Tentaram a Deus e provocaram o Altíssimo, e não observaram os seus preceitos. Deus fez tudo por eles. Eles nada fizeram por Deus.

Ora, se Deus reclama e pune a ingratidão dos judeus, diante desses benefícios, quanto maior será a dor do Sagrado Coração diante de nossos pecados e diante de nossa ingratidão, pois os benefícios que nos foram dados pelo Sagrado Coração são infinitamente superiores aos dados ao povo eleito. O Verbo veio ao mundo, padeceu desde o primeiro momento de sua encarnação e de seu nascimento. Fugiu para o Egito, levou trinta anos de uma vida humilde e escondida nos mais árduos trabalhos. Padeceu fome e sede, não tinha onde repousar a cabeça. Foi flagelado, foi cuspido e zombado. Foi coroado de espinhos, carregou sua caiu por terra três vezes. Foi crucificado, morto. Teve o Coração transpassado cruelmente por uma lança. Foi sepultado. Foi rejeitado por aqueles que ele veio salvar. Ensinou-nos toda a Verdade, fundou a Igreja, institui os sacramentos. Desce todo dia sobre os altares em Corpo, Alma, Sangue e Divindade para se entregar a nós. Perdoa nossos pecados na confissão. Deu-nos Nossa Senhora por mãe. E fez tudo isso, apesar de sermos pecadores. Que grandeza da caridade divina. E nós? Nós fomos elevados a uma sublime honra, a ponto do homem-Deus sofrer para nos salvar e nós não entendemos e preferimos nos assemelhar aos asnos tolos, pois quando pecamos nos assemelhamos aos animais, que não pensam e são incapazes de reconhecer a lei natural e a lei divina. Preferimos não seguir as leis de Deus, para seguir nossas irracionalidades, para nos tornar como os animais.

É exatamente o que ocorre de forma mais intensa no carnaval. O homem não entende a honra à qual foi elevado e se faz semelhante aos animais, pelos pecados, sobretudo pelos pecados de impureza, que de fato rebaixam o homem ao estado de animal. O homem prefere uma satisfação instantânea à vida eterna. O homem prefere perder o céu e dirigir-se ao inferno a agir conforme as leis divinas, conforme as leis naturais, conforme, portanto, àquilo que é o melhor para ele conforme com sua natureza racional. O homem prefere um instante ou uma vida passageira de prazeres e diversões desordenadas à vida eterna, à felicidade perfeita, à contemplação da verdade. O homem prefere flagelar novamente Nosso Senhor, coroá-lo de espinhos, flagel-alo, cuspir sobre o crucificado. O homem prefere aumentar o peso da cruz de Cristo. Prefere derrubá-lo e renovar a dor de todas as suas chagas, abertas para nos salvar. Ele prefere crucificar seu divino Salvador, ele prefere abrir o lado do Verbo encarnado e feri-lo diretamente em seu Sagrado Coração.

Esse Sagrado Coração continua sendo fonte de misercórdia e de caridade. E ele o será até o final da vida de cada homem. Mas um dia essa vida acaba e não sabemos quando, e se seguirá o juízo. E se o homem não se arrependeu sinceramente de seus crimes, o juízo será de condenação, pois ninguém zomba de Deus impunemente. Essas satisfações instantâneas e esses prazeres desordenados e irracionais, que assemelham o homem aos animais brutos se transformarão em sofrimento eterno. E serão condenados pelo amor divino, ou melhor, pela recusa do amor divino. Não poderão recorrer a esse amor, porque foram condenados justamente porque o recusaram.

Tantos benefícios divinos e tantos desprezos. Tanto amor e tanta indiferença. Tanta bondade e tanta malícia. Aproveitemos esses dias para acompanhar o Sagrado Coração de Jesus em seus sofrimentos, em sua agonia, em seu Coração ferido pela lança afiada dos pecados do carnaval. Acompanhemos Nosso Senhor com práticas de devoção, com mortificações, por menores e simples que sejam. Só a vinda a essa Missa nesses dias já é, talvez, para muitos um ato de generosidade. Devemos fazer um esforço. Alguns se dedicam tanto ao mal que passam dias sem dormir para cometer iniquidades. Dediquemo-nos um pouco ao bem, a Deus, ao Sagrado Coração de Jesus. Acompanhemos Nosso Senhor Jesus Cristo para que nosso coração possa formar com o dEle um só Coração, no sentido de amarmos Deus e o próximo, e a virtude e de detestarmos, o pecado, o vício e tudo o que conduz ao pecado. Não fiquemos indiferentes diante de tantos benefícios e de tanta caridade. Não fiquemos indiferentes diante dos sofrimentos do Sagrado Coração. Fomos elevados a uma honra sublime, a honra de filhos adotivos de Deus. Devemos compreendê-la e agir segundo essa filiação. É essa a nossa honra, a nossa glória, a nossa finalidade nesse mundo e a nossa alegria. Devemos nos fazer semelhantes não aos animais brutos, mas a Deus, nosso Pai.

Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao voso.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.