[Sermão] Nossa Senhora das Dores, a corredentora

Sermão para o 17º Domingo depois de Pentecostes – Festa de Nossa Senhora das Dores

15.09.2013 – Padre Daniel Pinheiro

ÁUDIO: Sermão para a Festa de Nossa Senhora das Dores Corredentora – 17º Domingo depois de Pentecostes 15.09.2013

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria…

O Livro do Apocalipse nos diz que “apareceu no céu um grande sinal: Uma mulher vestida de sol, e a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça; e, estando grávida, clamava com dores de parto, e sofria tormentos para dar à luz.” Nós já vimos, na Solenidade da Assunção, que essa mulher representa, principalmente, Nossa Senhora, já vimos o que significa ela estar vestida de sol, com a lua debaixo de seus pés e coroada de doze estrelas. Mas vemos também que ela está grávida e sofre com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Ora, sabemos que as dores do parto são consequência do pecado original, são uma pena pelo pecado original. Todavia, sabemos também que Nossa Senhora foi concebida sem o pecado original e sabemos que Nosso Senhor foi concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo. A partir disso, somos obrigados a concluir que Nossa Senhora não sofreu as dores do parto ao dar à luz o Menino Jesus. Mas o texto do Apocalipse é claro. A Mulher está grávida e sofre com as dores do parto e sofre tormentos para dar à luz. Que filho é esse, então, e que dores são essas, caros católicos? Esse filho de que nossa senhora está grávida somos nós, prezados católicos, somos nós, seus filhos na ordem da graça. Se Nossa Senhora deu à luz o Menino Deus sem dor, ela nos gera para a vida da graça em meio às maiores dores e sofrimentos. Se ela deu à luz a Cabeça, que é Cristo, sem dor, nós, os membros do corpo místico de Cristo, somos gerados com dor. Somos gerados pela dor de Cristo, pelos seus sofrimentos nesse mundo, e somos gerados pelas dores de Nossa Senhora, dores que acompanham o seu Filho, dores que ela aceitou e ofereceu para a nossa salvação. Nossa Senhora, ao dizer o “fiat” ao Anjo Gabriel, ao aceitar a Encarnação do Verbo, ao se submeter inteiramente à vontade de Deus, aceitou também todos os sofrimentos ligados ao seu papel de Mãe do Redentor. Ela aceitou cooperar na nossa redenção pelas suas dores, oferecendo seu filho. Nossa Senhora é verdadeiramente corredentora nossa. Claro que seu papel na redenção não é paralelo e independente de Cristo. Ao contrário, a participação de Nossa Senhora na nossa redenção é subordinada, dependente de Cristo e secundária. Nada falta na redenção feita por Cristo, que é verdadeiramente homem e Deus. Não obstante, Ele quis associar de modo particular Nossa Senhora na obra da redenção.

Um dos princípios que nos guiam quando falamos de Maria Santíssima é a antítese ou a contraposição com relação à Eva e ao papel de Eva no pecado original. No pecado original, Eva coopera com o pecado de Adão, mas o pecado original é só de Adão, pois só ele é realmente a origem do gênero humano. Se só Eva tivesse pecado, seria um pecado pessoal, não haveria o pecado original que herdamos todos e que nos faz nascer sem a graça santificante, sem a amizade com Deus. Eva coopera formalmente no pecado de Adão, mas o pecado é de Adão. Se invertermos, então, as coisas, temos que Nossa Senhora coopera na obra da redenção, feita por Cristo, o novo Adão. Se Cristo não tivesse sofrido e morrido na Cruz, Nossa Senhora nada poderia fazer. Toda a redenção vem de Cristo, Nossa Senhora é redimida e se ela coopera na obra da redenção é em virtude das graças obtidas por Cristo. Mas Cristo quis que Nossa Senhora cooperasse, de forma dependente, subordinada e secundária, na obra da nossa redenção, de nossa salvação. Nossa Senhora é realmente nossa corredentora, sem que isso tire em nada a glória de seu Filho e o valor infinito de sua encarnação e morte. Se Nossa Senhora é corredentora, isso é já um fruto da redenção.

Nossa Senhora oferece à Santíssima Trindade todas as suas dores – principalmente desde o momento da Encarnação – para a nossa redenção. Nossa Senhora, sendo Mãe do Redentor, o acompanha em todos os seus sofrimentos e penas durante toda a sua vida e principalmente em sua paixão e morte. Inúmeras são as dores e os sofrimentos de Nossa Senhora para nos gerar para a graça. São inúmeras as dores de Nossa Senhora durante toda a sua vida. A Igreja e o povo devoto escolheram principalmente sete dores de Nossa Senhora, dores que resumem todas as outras. A primeira delas é a profecia de Simeão, profecia de que uma espada transpassaria o coração de Nossa Senhora. Por essa dor, podemos pedir a Deus que imprima em nossas almas a Paixão de Cristo e as dores de Nossa Senhora, para que tenhamos sempre presente o quanto vale a nossa alma e o quanto custa o pecado, e podermos assim emendar a nossa alma. A segunda dor é a fuga para o Egito. Por essa dor, podemos pedir à Virgem Dolorosa a graça de sofrer com paciência até a morte todas as provações dessa vida. A terceira dor é a perda do Menino Jesus em Jerusalém durante três dias. Por essa dor, podemos pedir a graça de nunca perdermos Deus e a graça de morrermos unidos a Ele. A quarta dor é o encontro da Santíssima Virgem com seu Filho no caminho da Cruz. Por essa dor, podemos pedir a graça da conformidade com a vontade de Deus em todas as coisas e a graça de carregar a nossa cruz com alegria até nosso último suspiro. A quinta dor é a crucificação de Nosso Senhor. Por essa dor, podemos pedir a graça de viver e morrer crucificados para tudo o que é mundano. A sexta dor é a descida da Cruz, é Nossa Senhora que tem em seus braços seu Filho morto e desfigurado. Por essa dor, podemos pedir a graça do arrependimento e do perdão de nossos pecados. A sétima dor é o sepultamento de Cristo. E por essa dor, devemos pedir a graça da perseverança final.

São inúmeras as dores de Nossa Senhora e ainda maior é a qualidade e a intensidade dessas dores. Quanto maior é o amor, maior é a dor, ao ver o bem amado sofrer. O amor de Nossa Senhora por seu Divino Filho não pode ser calculado. Podemos, então, imaginar a sua dor diante do desprezo dos homens pelo Salvador, diante da crueldade, diante do deicídio. Nossa Senhora sofria enquanto Mãe de Cristo, mas também enquanto nossa Mãe, vendo tantos de seus filhos ofendendo a Deus. A Virgem Dolorosa sofreu mais do que todos os mártires juntos e deveria ter morrido de tanta dor, se Deus não a tivesse conservado em meio a tantos e tão grandes sofrimentos para que ela participasse da nossa redenção. Nossa Senhora, unida a Cristo, aceitou as dores e ofereceu as dores à Santíssima Trindade para nos salvar.

Todavia, quão esquecidas são as dores de Nossa senhora, caros católicos. A Virgem Santíssima, Santo Afonso nos diz (Glórias de Maria, 367), queixou-se à Santa Brígida de que muito poucos são os que dela se compadecem e que a maior parte dos homens vive esquecida de suas aflições. Em seguida, a Virgem recomendou à Santa que guardasse continuamente a memória dessas dores. Consideremos, pois, com frequência as dores de Nossa Senhora, caros católicos, e nelas encontraremos grandes consolos e grandes graças. Grandes consolos porque veremos que não há dor em nossa vida que supere as dores de Nossa Senhora. E uma Mãe que sofreu tanto se compadece ainda mais de seus filhos em seus sofrimentos. As dores de Nossa Senhora nos ensinam que aquele que semeia nas lágrimas, colhe na exultação, na alegria, como diz o Salmo (125). Nas aflições, nas provações, nas cruzes, olhemos para as dores de Nossa Senhora. Ela sofreu mais, e pode e quer nos consolar. Ela semeou nas lágrimas e colheu na alegria eterna. Olhemos para Nossa Senhora e seu coração transpassado pelas sete espadas. Encontraremos na Virgem Dolorosa a doçura necessária para suportar as nossas dores. No pecado, olhemos para as dores de Nossa Senhora e para a paixão de Cristo, e encontraremos graças abundantes de conversão. Olhemos para a Virgem Dolorosa e tenhamos uma grande gratidão por tudo aquilo que sofreu por nós em união com seu Divino Filho. Olhemos para Maria e vejamos do que é capaz uma Mãe que ama seus filhos.

Grandes graças, nos diz o mesmo Santo Afonso, estão reservadas aos devotos das dores de Nossa Senhora. O Santo relata a seguinte revelação feita a S. Isabel a esse respeito: “São João Evangelista, depois da Assunção da Senhora, muito desejava revê-la. Obteve, com efeito, essa graça e sua Mãe querida apareceu-lhe em companhia de Jesus Cristo. Ouviu em seguida Maria pedir ao Filho algumas graças especiais para os devotos de suas dores, e (ouviu) Jesus prometer quatro principais graças. Ei-las: 1º) esses devotos terão a graça de fazer verdadeira penitência por todos os seus pecados, antes da morte; 2º) Jesus guardá-los-á em todas as tribulações em que se acharem, especialmente na hora da morte; 3º) Ele lhes imprimirá no coração a memória de sua Paixão, dando-lhes depois um prêmio especial no céu; 4º) por fim, os deixará nas mãos de sua Mãe para que deles disponha a seu agrado, e lhes obtenha todos e quaisquer favores.” (Santo Afonso Maria de Ligório, Glórias de Maria, p. 368). Segundo esse relato, a devoção às Dores de Nossa Senhora é de origem apostólica. Mas nem precisávamos desse relato para saber disso. Basta considerar os Evangelhos, sobretudo o de São João, que nos diz que Nossa Senhora estava lá de pé, diante de Deus, de pé para mostrar seu consentimento, sua adesão total à obra da redenção, para mostrar a ausência de desespero, para mostrar a serenidade no meio das maiores dores. É evidente que os primeiros cristãos não podiam deixar de considerar as dores de Nossa Senhora.

Assim, prezados católicos, dada a excelência particular dessa devoção a Nossa Senhora das Dores, dado que ela tanto agrada a Nosso Senhor e a Nossa senhora, dado que ela manifesta o fato de que Nossa Senhora é corredentora, dado que essa devoção consola o Coração de Maria, dado que ela nos obtém grandes graças, recomendo a todos uma grande devoção às dores de Nossa Senhora. E levando tudo isso em consideração, depois da novena preparatória que fizemos, peço a cada um que se consagre a Nossa Senhora das Dores, com verdadeira intenção de emendar-se, de viver uma vida santa. É o que faremos recitando juntos o ato de consagração a Nossa Senhora das Dores. E consagrando-nos, consagraremos também esse nosso singelo apostolado, para que plantando nas lágrimas possamos colher na exultação. Porque, vejam, o fruto das dores de Nossa Senhora e da devoção à Virgem Dolorosa é a alegria. Por isso, o Papa Pio VII coloca a alegria como última invocação da Ladainha de Nossa Senhora das Dores. Nossa Senhora das Dores é a alegria de todos os santos, porque nos traz a salvação pelo seu Filho, porque unida a Ele nos redime, porque nos consola nas angústias e sofrimentos. Coloquemos, então, esse nosso apostolado nas mãos de Nossa Senhora das Dores, para que cada um de nós e para que os que vierem depois de nós possam colher na alegria da vida eterna.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A Cruz: altar, cátedra e trono de Cristo

Sermão para a Festa da Exaltação da Santa Cruz

14.09.2013 – Padre Daniel Pinheiro

ÁUDIO: Sermão para a Festa da Exaltação da Santa Cruz 14.09.2013

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria…

Hoje festejamos a Exaltação da Santa Cruz e também a entrada em vigor do Motu Proprio Summorum Pontificum (07/07/2007), de Bento XVI, documento que dá maior liberdade para a Liturgia Tradicional. Devemos manifestar nossa gratidão ao Papa por esse documento, pois convém reconhecer quando o bem é feito, ainda quando esse bem realizado é uma questão de justiça. Em todo caso, o documento vai na boa direção. Nele, o Papa afirma, com um argumento de fundo teológico, que a liturgia Tradicional não foi jamais ab-rogada: “Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar.” No documento de aplicação do Motu Proprio, a Instrução Universae Ecclesiae, temos o objetivo primeiro dessa liberdade reconhecida para a Missa Tradicional: “oferecer a todos os fiéis a Liturgia Romana segundo o Usus Antiquior, considerada como um tesouro precioso a ser conservado.” Portanto, o objetivo é que a Liturgia Tradicional, tesouro precioso, seja oferecida a todos os fiéis. E não é sem razão que a entrada em vigor desse documento coincide com a Exaltação da Santa Cruz, já que pela Missa Tradicional o sacrifício do calvário se renova de maneira sublime, aplicando abundantemente as graças obtidas por Cristo na Cruz. Tal aplicação sublime exalta a Cruz de Cristo.

“Nós, porém, devemos nos gloriar na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

A Festa de hoje nos lembra do fato histórico ocorrido em 628, ano em que o Imperador Heráclio conseguiu tomar de volta a Cruz de Cristo, que havia sido levada de Jerusalém pelos Persas, que a profanaram enormemente. Tendo recuperado a Santa Cruz, Heráclio quis entrar em Jerusalém carregando ele mesmo o Santo Lenho em ação de graças pela vitória. Todavia, vestido com todas as insígnias imperiais, não pôde entrar em Jerusalém, detido por uma força invisível. O Patriarca de Jerusalém assinalou ao Imperador que não convinha carregar com tanto aparato a Cruz que Nosso Senhor carregou com tanta humildade. Despojado de todo o aparato imperial, Heráclio conseguiu entrar em Jerusalém carregando a Cruz.

A Festa de hoje é a exaltação do instrumento de nossa salvação, que é a Cruz. A Festa de hoje nos recorda que é pela morte de NS, pela morte de Cruz de NS, que nós somos salvos. É pela Cruz que nos vem a vida e a ressurreição. A única coisa que importa nesse mundo é a Cruz, é a nossa salvação, caros católicos.

A cruz era antigamente um sinal de opróbrio, de maldição, de horror. Maldito o homem que pende da cruz, dizia a Sagrada Escritura. A Cruz era o suplício reservado aos maiores criminosos e aos escravos. Depois, porém, que NS morreu sobre ela, tornou-se sinal de glória, de bênção, de amor. Essa mudança se fez porque Cristo, morrendo sobre ela, a consagrou. Ele fez da Cruz o altar em que se imola, a cátedra de onde nos instrui, e o trono de onde reina sobre o mundo.

Ele fez dela seu altar. Depois do pecado original, o homem já não podia encontrar a salvação. Como reparar pelo pecado, que ofendeu infinitamente a majestade divina? Seria impossível. O homem poderia oferecer todos os sacrifícios, até a própria vida, e não conseguiria obter perdão, não conseguiria satisfazer pelo seu pecado. Para satisfazer plenamente por nossos pecados, o Verbo se Encarnou. Mas não se contentou somente em vir ao mundo, o que já era suficiente. Sendo Cristo homem e Deus, suas ações têm um valor infinito. A menor das ações de Cristo já seria suficiente para satisfazer por todos os pecados do mundo inteiro. Mas o Filho de Deus veio ao mundo para morrer na Cruz. Para morrer na Cruz, a fim de satisfazer pelos nossos pecados e para mostrar o tamanho de seu amor por nós. Ele amou os homens até a morte e morte de Cruz. É na Cruz que Cristo se imola e que oferece seu sacrifício para a nossa redenção. É do altar da Cruz que nos vem todo o bem: o perdão de nossos pecados e todas as graças, que nos são aplicadas pela Santa Missa, renovação do sacrifício da Cruz.

A Cruz é também a cátedra de onde NS nos instrui. Santo Agostinho a chama Cátedra do Mestre que ensina (cathedra magistri docentis). Na Cruz, NS nos ensina a santidade. Ali, elevado, NS nos mostra o que realmente tem valor nesse mundo: fazer em todas as coisas a vontade de Deus. Ali, elevado no madeiro, NS nos ensina todas as virtudes: a conformidade com a vontade de Deus, a fortaleza, a paciência, a mortificação, a caridade, enfim, todas as virtudes.  No madeiro, flagelado e coroado de espinhos, NS nos ensina as consequências do pecado, Ele nos ensina a gravidade de nossos pecados. Consideremos, caros católicos, em que estado nossos pecados deixam o Verbo Encarnado. Na Cruz, Ele nos ensina que podemos obter misericórdia, com o exemplo do bom ladrão. Mas nos ensina também que podemos, infelizmente, recusar a graça, como o mau ladrão. Ali, Ele nos ensina o valor da graça e da nossa alma, pois para nos alcançar a graça e alcançar a redenção de nossa alma, NS, homem e Deus, pagou o preço de seu sangue derramado na Cruz. Da Cruz, Nosso Salvador nos ensina que, para alcançar o céu, é preciso segui-lo, carregando com a ajuda d’Ele as nossas cruzes, suportando-as com paciência e, mais do que isso, abraçando-as com amor.

A Cruz de Cristo é o trono de onde Ele reina. Ele reina, tendo agradado infinitamente à Santíssima Trindade com seu sacrifício na Cruz. Ele reina sobre nós, tendo nos redimido e resgatado com seu sangue. Ele reina sobre a morte e o inferno, tendo ressuscitado em virtude de sua morte na Cruz. Ele reina sobre todas as criaturas, e diante dEle, todo joelho deve se dobrar no céu, na terra e no inferno. Pela Cruz, Cristo foi anunciado, conhecido, adorado amado por toda a terra. O Senhor reinou a partir do madeiro.

Não sem razão – dizia eu antes de começar o sermão – o documento papal reconhecendo a liberdade da Missa Tradicional entrou em vigor no dia 14 de setembro, dia da Exaltação da Santa Cruz. Não sem razão porque a Missa Tradicional expressa perfeitamente esses três aspectos da cruz de Cristo: o altar, a cátedra, o trono. Ela exprime o altar porque na liturgia Tradicional é claríssimo que o que está ocorrendo sobre o altar é o sacrifício da Cruz renovado de forma incruenta, sem sangue, e que ele se realiza em particular para o perdão dos nossos pecados. Ela exprime perfeitamente a cátedra, nos ensinando todas as virtudes, nos ensinando com toda segurança a doutrina católica, sobretudo quanto à presença real de Cristo em corpo, alma, sangue e divindade depois da consagração. Ela exprime perfeitamente o trono de Cristo, pois aqui, tudo, absolutamente tudo está orientado para NSJC e submetido a Ele, sem espaço para que nós nos tornemos o centro da Missa.

Quanto a Cruz de Cristo deve ser exaltada, caros católicos, Cruz de onde pendeu a nossa Salvação! Mas quantos, infelizmente, são os inimigos da Cruz de Cristo. Quantos querem tirar de nossa sociedade a Cruz de Cristo. Quantos querem tirá-la dos locais públicos, dos tribunais, dos hospitais, das escolas. Quantos querem tirar de nossa sociedade a salvação trazida por Cristo. Quantos de nós, por nossos pecados, renegamos a Cruz de Cristo e a salvação que ela nos traz. Mas a Cruz de Cristo permanecerá como o único meio de salvação. Dum volvitur orbis, stat Crux. Enquanto o mundo gira e muda, a Cruz permanece. Desde o início do mundo até o final dos tempos, é Cristo crucificado que pode nos salvar. Não há ressurreição, não há vida eterna sem a Cruz, sem a Cruz de Cristo e sem as nossas cruzes carregadas no quotidiano em união com Cristo. Digamos e façamos como São Paulo: gloriemo-nos somente na Cruz de Cristo. Dizia o Santo Apóstolo: longe de mim o gloriar-me, a não ser o gloriar-me da Cruz de Cristo.

E Essa Cruz de Cristo está aqui diante de nós, sobre o altar. Mas é no momento da consagração que essa Cruz se fará presente, se renovará. Unamo-nos à Cruz de Cristo, unamo-nos a Cristo na Santa Missa, para nos oferecermos inteiramente a Ele, com tudo o que somos e temos.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A natureza do culto a Nossa Senhora: veneração, amor, gratidão, invocação, imitação.

Sermão para o 16º Domingo depois de Pentecostes

8 de setembro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

ÁUDIO: Sermão para o 16º Domingo depois de Pentecostes Natividade N. Sra. A natureza do culto a Nossa Senhora veneração, amor, gratidão, invocação, imitação 8.09.2013

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria…

Avisos:

Hoje é dia 8 de setembro, dia da Natividade de Nossa Senhora. É também o dia da fundação do IBP (Instituto do Bom Pastor), em 2006. Peço a todos que rezem pelo Instituto, pelos seus membros, sobretudo por mim. O Instituto, como sabem, baseia seu apostolado na “fidelidade ao Magistério Infalível e no uso exclusivo da liturgia gregoriana na digna celebração dos santos mistérios” (Estatutos, Finalidade, 2).

Rezemos pela Síria e pelo nosso país.

Sermão

“Salve, ó Mãe Santíssima, que destes à luz o Rei que governa a terra e o Céu por todos os séculos.” (Introito da Missa da Natividade de Nossa Senhora).

No dia da Assunção de Nossa Senhora, falamos da necessidade da devoção a tão boa mãe para a nossa salvação. Aproveitemos que hoje é o dia da Natividade de Nossa Senhora para honrar Maria Santíssima e honrá-la tratando da natureza do culto que lhe deve ser tributado, para podermos ser bons e fiéis filhos dela. Trataremos, então, do tipo de culto que é devido a Nossa Senhora. Veremos que é um culto denominado de hiperdulia e que é um culto de veneração, de amor, de gratidão, de invocação, de imitação, de escravidão.

O culto, segundo a definição de São João Damasceno, é o reconhecimento da excelência de quem é cultuado, com a consequente submissão a ele. Nossa Senhora pode ser, então, cultuada religiosamente, pois possui grande excelência e nos é muito superior na ordem da graça. Cultuá-la, nada mais é do que reconhecer que Deus fez nela maravilhas, maravilhas que superam todas as maravilhas concedidas às criaturas.

A natureza do culto depende da natureza da excelência. Ora, Deus tem uma excelência infinita, Ele é o criador de todas as coisas, infinitamente perfeito. A Deus se deve o culto de latria, de adoração, de total submissão à sua onipotência. O culto de latria é exclusivo para Deus. Adorar uma criatura no sentido preciso da palavra é cometer um pecado de idolatria. Aos santos, consequentemente, é devido um culto de outra natureza, chamado culto de dulia, de veneração, em virtude da excelência sobrenatural que possuem, quer dizer, em virtude da santidade que possuem, da união profunda e definitiva que possuem com a Santíssima Trindade. Aos santos é devido tal culto pelo que possuem de Deus, pela graça que possuem, pelas virtudes que possuem, pela caridade que possuem. Com tal culto, não somente é lícito, mas é também muito útil e conveniente invocar e reverenciar os santos. Esse culto aos santos é doutrina de fé e mandado pela Igreja. Nossa Senhora tem, por um lado, uma excelência infinitamente inferior a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa Senhora é uma criatura, ainda que seja a criatura mais perfeita. A Nossa Senhora não se pode prestar, evidentemente, um culto de latria, de adoração. Fazê-lo seria uma desordem grave. Por outro lado, Nossa Senhora está muito acima dos outros santos e mesmo dos anjos. Sua excelência supera a excelência de todos os santos e anjos juntos. Portanto, a Maria Santíssima é devido um culto especial, particular, denominado de hiperdulia, que se distingue do culto de dulia aos santos pelo grau, em virtude da santidade e excelência particulares da Santíssima Virgem. Todavia, o culto a Nossa senhora é distinto do culto aos santos não somente em grau, mas também em sua natureza, pois a dignidade de Maria não é simplesmente a dignidade da santidade, mas é a dignidade de Mãe de Deus, o que a coloca na ordem da união hipostática, ainda que de modo relativo somente. Assim, o culto devido a Nossa Senhora é o culto de hiperdulia, um culto que é infinitamente inferior ao culto devido a Deus, mas que é muito superior ao simples culto de dulia devido aos santos. E isso em virtude da santidade extraordinária de Nossa Senhora e de sua Maternidade Divina. Nada mais falso, portanto, do que a acusação dos protestantes que dizem que os católicos adoram Nossa Senhora. Santo Epifânio já dizia: “Maria seja honrada. Deus, adorado.” (Adv. Haer., III, haer. 79, PG 42, 742)

Esse culto devido a Nossa Senhora deve se expressar com cinco atos principais: 1) atos de veneração, pela excelência e dignidade quase infinitas da Mãe de Deus; 2) atos de amor, porque, além de ser Mãe de Deus, é também nossa Mãe; 3) atos de gratidão, porque é nossa corredentora; 4) atos de invocação, porque ela é medianeira de todas as graças; 5) finalmente, o culto de Nossa Senhora deve incluir também a imitação, por causa da excelência de suas virtudes.  A esses cinco atos, devemos também a Nossa Senhora um singular culto de escravidão, pois ela é Rainha do Céu e da Terra. Desse culto de escravidão, porém, falaremos em outra oportunidade.

Com a veneração, reconhecemos a excelência e a superioridade de Nossa Senhora. Essa veneração deve ser interior, estimando as qualidades de Nossa senhora com a mente e honrando-a com a vontade, quer dizer, dando testemunho de sua excelência, como deve ser também exterior, com as práticas piedosas estabelecidas para esse fim, sejam elas públicas ou privadas, individuais ou sociais, litúrgicas ou extra-litúrgicas. Assim, poderemos nos associar à veneração manifestada pelo anjo Gabriel, por Santa Isabel, e a profecia feita por Nossa Senhora de que todas as gerações a chamariam bem aventurada se cumprirá. E sabemos bem que a honra do filho está em grande parte na mãe. Assim, quando veneramos Maria, seu Filho é também estimado e honrado.

Com o amor, retribuímos a Maria sua maternidade espiritual para conosco. Foi ela que nos trouxe ao mundo o princípio da graça, que é Nosso Senhor. O Espírito Santo usa Nossa Senhora como instrumento para nos transmitir as graças. Ela, portanto, nos gera para a graça, em certo sentido. Ela é realmente nossa Mãe. Ela também nos ajuda e nos conduz pelo bom caminho, como toda boa mãe. A Sagrada Escritura nos manda honrar pai e mãe naturais. Quanto mais honrada deve ser, então, nossa Mãe na ordem da graça. Devemos também reconhecer em Maria a mais santa das criaturas, e devemos amar em Maria esse bem imenso, essa grande santidade, essa profunda união com Nosso Senhor. O amor nos faz desejar o bem do amado. Ele nos manda fazer tudo o que agrada ao ser amado e nos proíbe tudo o que desagrada ao ser amado. Assim, esse amor filial profundo a Nossa Senhora deve traduzir-se em obras. A prova do amor são as obras, nos diz São Gregório Magno. Portanto, esse amor a Nossa Senhora deve nos levar à prática dos mandamentos, das virtudes e deve nos afastar de tudo o que ofende a Nossa Senhora, quer dizer, do pecado e daquilo que nos leva ao pecado. Amando assim Nossa Senhora, amaremos também Cristo, pois só é agradável a Nossa Senhora aquilo que é agradável ao seu Filho. Da mesma forma, tudo o que desagrada a Cristo, desagrada a Maria. Esse amor é o centro, o coração do culto a Nossa Senhora.

Com a gratidão, damos aquilo que é devido aos nossos benfeitores. A gratidão tem três graus. O primeiro é reconhecer o benefício recebido, o segundo é agradecer com palavras e o terceiro é retribuí-lo com obras. Depois da Santíssima Trindade, depois do Verbo Encarnado que nos redimiu, Maria Santíssima é a nossa maior benfeitora, a maior benfeitora do gênero humano, sobretudo por sua qualidade de corredentora ao pé da cruz. Quão grande deve ser nossa gratidão para com Maria, que ofereceu seu Divino Filho para o perdão de nossos pecados e que aceitou ter sua alma transpassada pela espada para que fôssemos redimidos. Com grande generosidade, Nossa Senhora nos entregou o maior bem que existe, ela nos entregou Nosso Senhor. Assim, devemos ser gratos a tão boa Mãe e Corredentora. Devemos ser gratos interiormente, considerando os incalculáveis benefícios que Maria nos fez e faz. Devemos ser gratos exteriormente com palavras, louvando-a, e agradecendo-lhe incessantemente, pois, dado o tamanho do benefício, nunca conseguiremos manifestar a nossa gratidão por completo. Devemos ser gratos externamente com as obras, retribuindo tantos benefícios e sacrifícios com alguns sacrifícios, sobretudo oferecendo a nós mesmos a Maria Santíssima, para que ela nos conduza com segurança até seu Filho. Devemos retribuir com uma vida de santidade. Muitas vezes nos esquecemos de agradecer devidamente a Maria por todos os benefícios que ela nos deu e dá.

Com a invocação, reconhecemos que Nossa Senhora é, por vontade divina, a medianeira de todas as graças. Assim, devemos a ela um culto de grande confiança, devemos recorrer a Maria e invocá-la em toda necessidade espiritual e material. E devemos recorrer a ela e invocá-la completamente seguros de que seremos sempre ouvidos, se a graça solicitada é necessária ou conveniente para nossa salvação. Devemos recorrer a ela sempre: nas dúvidas, para que nos esclareça; nos extravios, para que voltemos para o bom caminho; nas tentações, para que nos ajude; nas fraquezas, para que nos fortaleça; nas quedas, para que nos levante; nas desolações, para que nos anime; nas cruzes e trabalhos, para que nos console. Sempre e em todo lugar devemos recorrer a Maria, como à melhor das mães. Aquela que entregou seu próprio Filho para nos salvar não recusará interceder por nós. O Evangelho, nas Bodas de Caná, nos indica a confiança com que devemos nos dirigir a Maria. Ela intercede pelos noivos sem que eles tenham pedido, pois os noivos nem sabem que estava faltando vinho e não sabem que precisam daquela graça. Se Nossa Senhora nos ajuda quando não pedimos, imaginem o que faz quando recorremos a ela com grande confiança e humildade. Nossa Senhora conhece bem as nossas necessidades. Ela pode nos conceder sua ajuda e quer nos ajudar. Não precisamos de mais nada para correr a Nossa Senhora.

Com a imitação, reconhecemos na Mãe de Deus um modelo e exemplo perfeitíssimo de todas as virtudes. Para cultuar adequadamente Nossa Senhora devemos imitá-la, reproduzindo em nossa vida as virtudes de Maria no pensar, no falar, no agir, enfim, em todas as coisas. A imitação de uma pessoa é um verdadeiro culto a ela, porque a tomando como modelo reconhecemos sua excelência e superioridade moral e nossa submissão a ela. Toda a virtude de Maria está resumida naquela famosa frase: “fiat mihi secundum verbum tuum”. “Faça-se em mim segundo a vossa palavra.” A raiz das perfeições de Nossa senhora está na sua perfeita conformidade com a vontade de Deus. Devemos buscar essa conformidade total com a vontade divina. E Maria é um modelo sublime e acessível a todos, como diz Leão XIII. Diz o Papa (Enc. Magnae Dei Matris, 8 de setembro de 1892): “a bondade e a Providência divina nos deu em Maria um modelo de todas as virtudes, (um modelo) todo feito para nós. Porque, considerando-a e contemplando-a, as nossas almas já não ficam ofuscadas pelos fulgores da divindade, senão que, atraídas pelos vínculos íntimos de uma comum natureza, com maior confiança se esforçarão por imitá-la. Se, amparados pelo seu eficaz auxílio, nós nos dedicarmos com todas as nossas forças a esta obra (de imitá-la), certamente conseguiremos reproduzir em nós ao menos algum traço de tão grande virtude e santidade; e, depois de havermos imitado a sua admirável conformidade com as divinas vontades, poderemos juntar-nos a Ela no céu.” Assim, o culto perfeito a Nossa Senhora supõe o firme propósito de imitá-la.

A devoção a Maria deve ser, então, uma devoção de veneração, uma devoção de amor, uma devoção de gratidão, uma devoção de invocação, uma devoção de imitação. A devoção a Nossa Senhora nesses quatro atos e em todos os atos deve ser sempre uma devoção interior, quer dizer, que realmente brota do desejo de honrá-la, de reconhecer e de nos submeter à grandeza de Nossa Senhora. A devoção também deve ser terna, isto é, cheia de confiança, como uma criança confia em sua mãe. A devoção a Nossa Senhora deve ser uma devoção santa, que tem por objetivo evitar todo pecado e imitar as virtudes de Maria, principalmente sua humildade profunda, sua fé vivíssima, sua obediência; sua oração contínua, sua mortificação, sua pureza divina, sua esperança firmíssima, sua caridade ardente, sua paciência heroica, sua sabedoria celestial. A devoção a Nossa Senhora deve ser igualmente constante, quer dizer, deve ser uma devoção que consolida nossa alma no bem e que nos dá forças para não abandonarmos facilmente as práticas devocionais. Ela deve dar à alma a constância e o ânimo no combate contra o mundo, a carne, o demônio. A devoção a Nossa Senhora deve ser uma devoção desinteressada, tendo como principal motivo não os benefícios que recebemos, mas sim, as perfeições de Nossa Senhora, a excelência dela, a santidade dela, a sua profunda união com Cristo. O devoto de Maria deve amá-la e honrá-la sem buscar a si mesmo em primeiro lugar.

Portanto, caros católicos, já sabemos como praticar essa devoção a Nossa Senhora, devoção que é necessária para a nossa salvação. Devemos venerar Maria, amá-la profundamente, agradecer-lhe com imensa gratidão, invocá-la com grande confiança e imitá-la em todas as virtudes. E fica claro que se fizermos tudo isso, caminharemos rapidamente e com segurança para Nosso Senhor Jesus Cristo, para a união com Cristo, união que deve ser o fim de toda e qualquer devoção. Quem honra a Mãe, honra o Filho. Quem desagrada à Mãe e a ofende, desagrada ao Filho e o ofende. Quem agrada a Mãe, agrado o Filho. Quem ama a Mãe ama o Filho.

Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] As três ressurreições e os três tipos de morte da alma

Sermão para o 15º Domingo depois de Pentecostes
1º de setembro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

ÁUDIO: Sermão para o 15º Domingo depois de Pentecostes Viúva de Naim Três Ressurreições e três mortes da alma 1.09.2013

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…

“Jovem eu te digo: levanta-te.”

São Lucas é o único Evangelista a narrar essa ressurreição, a ressurreição do único filho de uma viúva de uma cidade chamada Naim. Uma grande multidão seguia Nosso Senhor em virtude da belíssima doutrina que Ele ensinava – o sermão da montanha ainda estava impresso nas almas – e em virtude dos milagres que ele operava para confirmar a origem divina da sua doutrina, fazendo ao mesmo tempo um grande bem ao povo com esses milagres. Além dessa grande multidão que seguia Cristo, havia também uma grande quantidade de pessoas que seguia, por compaixão pela pobre mãe viúva, o cortejo fúnebre desse jovem. São Lucas nos diz ainda que o milagre ocorreu próximo da porta da cidade. Ora, na porta das cidades dos judeus havia grande quantidade de pessoas também, pois era nas portas que os judeus faziam os mercados e os tribunais (Salmo 68,13). Esse encontro entre a multidão que seguia Nosso Senhor Jesus Cristo, a multidão que seguia o cortejo fúnebre e a multidão que se encontrava na porta da cidade não é um acaso, mas é disposto pela vontade divina de Cristo, a fim de que o milagre seja conhecido por muitos, a fim de que muitos possam crer nEle e naquilo que Ele diz, para que muitos possam se salvar.

E Nosso Senhor ressuscita esse jovem diante de uma multidão imensa de pessoas com uma grande facilidade. Ele simplesmente diz ao jovem: Eu te digo, levanta-te. E para provar a ressurreição, o jovem não somente se levantou e se sentou, como começou a falar. Cristo mostra, então, seu domínio absoluto sobre a vida e a morte, domínio que só pode ser divino. Essa ressurreição é bem diferente das ressurreições feitas por Elias e Eliseu no Antigo Testamento, também em favor de viúvas. Os dois tiveram que fazer vários gestos, várias orações, implorando a Deus a ressurreição, enquanto Cristo ressuscita o jovem com uma simples ordem, que se cumpre imediatamente. O bom senso da multidão reconhece que aí está o dedo de Deus e essa multidão se enche de um bom temor de Deus. Digo de um bom temor porque é um temor reverencial e de respeito pela onipotência divina, e temor que leva os presentes a glorificarem a Deus. Se ainda não reconhecem em Cristo o Verbo de Deus humanado, ao menos o reconhecem como um profeta, como alguém enviado por Deus para dizer a verdade. Também nós reconhecemos Cristo como um profeta e muito mais do que um profeta, pois afirmamos que Cristo é Deus. Por que não crer, então, em tudo aquilo que nos ensinou e nos ensina pela sua santa Igreja? Por que não praticar aquilo que Ele nos ordena fazer, se é para a glória de Deus e para o nosso bem, para a nossa salvação?

Mas não devemos esquecer um detalhe importante do Evangelho de hoje. Cristo opera o milagre da ressurreição do jovem por compaixão pela mãe viúva. São as lágrimas da mãe, no fundo, que moveram Cristo a realizar esse milagre, como as lágrimas de santa Mônica moveram Cristo a converter seu filho, Santo Agostinho. As lágrimas, as orações, as súplicas das mães pelos seus filhos – as dos pais também, mas sobretudo as das mães – têm um grande valor e eficácia diante de Deus. Que os pais não negligenciem as orações fervorosas pelos filhos. Essas orações são parte integrante do dever dos pais em relação aos filhos.

Todavia, é outra a lição principal do Evangelho de hoje. Nós sabemos que a ressurreição do jovem filho da viúva de Naim não é a única ressurreição que Cristo fez. Pelos Evangelhos, sabemos que Cristo fez pelo menos três ressurreições. Mas é bem provável que tenha feito muitas outras, pois nem tudo o que Ele fez está escrito. Se se escrevesse tudo o que Cristo fez nem no mundo todo poderiam caber os livros que seria preciso escrever, como nos diz São João (Jo 21,25). Longe esteja de nós, portanto, limitar-nos à Sagrada Escritura, desprezando a Tradição. Dizíamos, então, que são três as ressurreições narradas nos Evangelhos. A ressurreição da filha de Jairo, chefe de uma Sinagoga, a ressurreição do jovem filho da viúva de Naim que acabamos de ouvir, e a ressurreição de Lázaro. A filha de Jairo foi ressuscitada quando ainda se encontrava dentro da casa. O jovem foi ressuscitado no caminho para ser enterrado. Lázaro foi ressuscitado depois de 4 dias já sepultado. Cada um desses três mortos representa as três classes de mortos que Nosso Senhor ressuscita diariamente. A morte da filha de Jairo, ressuscitada ainda dentro de casa, representa o pecado grave cometido por pensamento seguido de consentimento, mas que não se traduziu em nenhum ato exterior. Pensar no mal voluntariamente, alegrar-se com o mal cometido ou desejar fazer o mal são pecados interiores que nos valem a morte se dizem respeito à matéria grave. Nosso Senhor diz, por exemplo, que aquele que olha uma mulher para desejá-la já adulterou em seu coração. A filha de Jairo representa, assim, o pecado interno. O jovem filho da viúva de Naim, ressuscitado no caminho para o cemitério, representa o pecado grave cometido também exteriormente e que tem, portanto, maior intensidade que o pecado cometido só interiormente. Lázaro, ressuscitado depois de quatro dias enterrado, representa o pecado grave que já se tornou uma inclinação arraigada na alma e que a pessoa muitas vezes já nem consegue reconhecer como um mal. Ora, é mais difícil curar o pecado que já se tornou um hábito do que o simples pecado exterior, assim como é mais difícil curar o pecado que se traduziu em obras ruins do que o pecado que é só interior. O pecado puramente interior é mais fácil de ser abandonado e perdoado: Cristo ressuscitou a menina ainda na casa. O pecado que é também exterior já é mais difícil de ser abandonado e perdoado, dada a sua maior intensidade: Cristo ressuscitou o jovem já no caminho para o cemitério, cemitério que simboliza, nesse caso, a morte eterna causada pela separação eterna de Deus. O pecado habitual, aquele que já é para nós quase uma segunda natureza é muito difícil de ser abandonado e, portanto, de ser perdoado: Cristo ressuscitou Lázaro somente após 4 dias de sepultura, quer dizer, já muito perto da morte eterna. E depois de ressuscitado, Lázaro ainda estava amarrado, mostrando que mesmo depois do perdão de um pecado habitual a tendência, a inclinação para voltar a cometê-lo é grande.

Todavia, Cristo ressuscitou cada um desses três mortos, quer dizer, Cristo perdoa todos esses pecados que esses mortos representam, mesmo os mais graves, mesmo os mais arraigados, desde que estejamos dispostos a receber o perdão, quer dizer, desde que (1) detestemos o pecado, desde que (2) tenhamos o firme propósito de não mais cometê-lo, desde que (3) confessemos todos os nossos pecados graves ao padre com sinceridade e simplicidade e desde que (4) estejamos dispostos a cumprir a penitência dada por ele. A confissão é o meio pelo qual a misericórdia divina ressuscita as nossas almas. A confissão foi criada pelo Sagrado Coração de Jesus, que deseja ardentemente a nossa salvação até o ponto de ser transpassado pela lança. Todo pecado é perdoável, mas é preciso buscar logo esse perdão, para não morrermos em pecado mortal. Lembremo-nos de que o filho da viúva era jovem. Busquemos a confissão com confiança e rapidamente.

Devemos também tirar do Evangelho de hoje a lição de que devemos cortar o mal imediatamente na raiz, quer dizer, devemos combater a tentação, cortando-a quando ela começa a aparecer na nossa imaginação e na nossa inteligência. Para combater a tentação devemos fazer o ato de virtude contrário, devemos desviar o nosso pensamento para algo lícito, bom e, se possível, santo. Devemos fugir das ocasiões de pecado, nos mortificar. Se não cortamos esses maus pensamentos imediatamente, terminaremos consentindo, depois passando para as obras e criando um vício, um costume ruim.  É mais fácil evitar que uma árvore seja plantada do que cortar uma árvore já plantada ou que tenha raízes profundas. É preciso, assim, evitar o plantio das árvores más e arrancar as já plantadas. Mas isso não basta. É preciso ocupar o terreno com as árvores boas da virtude, da obediência total à lei de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo na sua imensa compaixão diante de nossas misérias, compaixão tal como a vimos relatada hoje no Evangelho, quer ressuscitar a nossa alma. Mas ele pede também a nossa cooperação. Não recusemos cooperar com um Deus que quer nos salvar.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A Mulher coroada de estrelas: a necessidade da devoção a Nossa Senhora para a alcançar a salvação

Sermão para a Festa da Assunção de Nossa Senhora
18 de agosto de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…

“Apareceu um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas.” (Apoc. 12, 1)

A Assunção de Nossa Senhora significa que ela, depois de passar a sua vida aqui na terra, subiu aos céus em corpo e alma. A Assunção de Nossa Senhora sempre foi verdade ensinada pela Igreja, é verdade contida na doutrina dos Apóstolos. Todavia, foi em 1950, com o Papa Pio XII, que a Assunção de Nossa Senhora ao céu foi proclamada como dogma da fé, quer dizer, a Igreja afirmou infalivelmente que a Assunção é uma verdade revelada por Deus e que devemos acreditar nessa verdade, se queremos nos salvar. Assim, quem nega a Assunção de Nossa Senhora perde automaticamente a fé católica e desagrada a Deus, pois sem a fé é impossível agradar a Deus. Nossa Senhora foi a primeira redimida integralmente, ela foi aos céus em corpo e alma, ao contrário dos santos e de todos os que morrem em estado de graça, que devem esperar a ressurreição do corpo no fim dos tempos. Nossa Senhora é a primeira redimida integralmente porque ela é a corredentora. Convinha que, tendo sido associada tão intimamente à obra de redenção operada por NSJC, ela fosse também intimamente associada à glória d’Ele, pela Assunção em corpo e alma ao céu, e sem que seu corpo conhecesse a corrupção, pois foi esse corpo que deu ao Salvador a sua carne humana. Maria Santíssima, então, subiu aos céus em corpo e alma.

A Festa da Assunção de Nossa Senhora deve, assim, elevar a nossa alma para as coisas celestes, para a nossa verdadeira pátria, que é o céu. Como nos diz a coleta da Missa de hoje, devemos estar sempre inclinados para as coisas celestiais, a fim de podermos participar da glória celeste. Onde está nosso tesouro lá está o nosso coração. Se olhamos para as coisas desse mundo, se nos inclinamos às coisas desse mundo, é porque nosso tesouro está aqui nessa terra e, consequentemente, também o nosso coração, a nossa vontade está apegada às coisas desse mundo. Nossa Senhora, por sua Assunção, nos mostra que nosso tesouro é bem outro. Ela nos mostra que nosso tesouro é a Santíssima Trindade, ela nos mostra que nosso tesouro é seu Filho, Jesus Cristo, a Verdade, o Caminho, a Vida.

Maria Santíssima nos aponta o tesouro a ser buscado – o céu – mas, além disso, ela nos indica, igualmente, o caminho. Ela nos indica o caminho nessa passagem do Apocalipse que compõe o Introito da Missa de hoje: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas.” (Apocalipse 12, 1) Nossa Senhora está revestida de sol, tendo a lua a seus pés e coroada com 12 estrelas.

1. N. Sra. está revestida de Sol. O sol representa Jesus Cristo, que é a luz do mundo e o Sol de Justiça. Como nos diz S. Paulo, nós devemos nos revestir de Cristo (Rom 13, 14), quer dizer, nós devemos nos revestir do homem novo, criado em justiça e santidade (Efésios 4, 24). Devemos nos revestir de Jesus Cristo para imitar as virtudes d’Ele, para fazer tudo por Ele, com Ele e n’Ele. Devemos nos revestir de Cristo para que os frutos de sua redenção possam nos ser aplicados.

2. Em seguida, Maria esmaga a lua com seus pés: a lua representa aqui o mundo e o seu príncipe, a serpente. A lua é mutável, instável, inconstante, ela tem várias fases. Também o mundo com seus tesouros passageiros, que são os pecados, é mutável. Nossa Senhora esmaga a lua, reduzindo-a ao nada, como Judith (Epístola de hoje) ao matar Holofernes reduziu ao nada os inimigos de Israel. Deus, ao contrário do mundo e do pecado, é eterno e imutável, caros católicos. Céus e terras passarão. A Palavra de Deus não passará. Devemos ser firmes e constantes no serviço de Deus, firmeza e constância que são verdadeira sabedoria. A Sagrada Escritura nos diz: Stultus ut luna mutatur; sapiens autem permanet ut sol. (Eclesiástico 27, 12) O insensato, o tolo é inconstante como a lua; o sábio, porém, é constante como o sol. Devemos esmagar a lua e sermos constantes como o sol, devemos esmagar o pecado, o demônio, o mundo, e devemos ser constantes como Cristo foi constante em fazer sempre a vontade de Deus.

3. Finalmente, Maria Santíssima está coroada de doze estrelas. O Patriarca José, filho de Jacó, teve um sonho em que onze estrelas se prostravam diante dele. Essas onze estrelas eram os irmãos de José, as tribos do povo hebreu, que lhe iriam implorar socorro quando chegasse o tempo das vacas magras.  Essa coroa de Nossa Senhora, com doze estrelas, representa toda a humanidade que deve prostrar-se diante dela, implorando-lhe as graças adquiridas por Cristo na cruz. Essa coroa significa a realeza e a soberania de Maria sobre toda a humanidade e nos mostra como devemos ter veneração e devoção, nesse vale de lágrimas, a tão soberana Rainha e Rainha de Misericórdia.

Assim, se quisermos alcançar o céu, devemos primeiramente olhar para o céu, desejá-lo. Em seguida, devemos nos revestir de Cristo, da sua graça, de suas virtudes. Devemos, igualmente, esmagar o pecado. Mas para fazer tudo isso, devemos ter devoção a Nossa Senhora. Esse último ponto é indispensável, caros católicos. A devoção a N. Sra. é necessária para a nossa salvação.

A devoção a Nossa Senhora é indispensável para a salvação porque para nos salvarmos devemos praticar as virtudes. Para praticar as virtudes, precisamos da graça de Deus. Para alcançar a graça de Deus, necessitamos recorrer a Maria. Necessitamos de Maria para alcançar a graça porque Deus quis que fosse assim. Ele poderia ter feito de outro modo, não há dúvida. Deus não era obrigado a usar uma mera criatura para transmitir as suas graças. Todavia, na sua sabedoria, quis que fosse assim. 1) Devemos ter devoção a N. Sra. porque Deus a escolheu como tesoureira, administradora e dispensadora de todas as sua graças, de sorte que todas passam por suas mãos. Ela é a medianeira de todas as graças. 2) Assim como na ordem da natureza temos necessariamente um pai e uma mãe, também na ordem da graça devemos ter Maria por Mãe, se queremos ter Deus por Pai. 3) A devoção a Maria é necessária porque tendo ela formado a Cabeça do corpo místico – que é Cristo – cooperando com o Espírito Santo, ela forma, também com o Espírito Santo, os membros desse corpo, dessa cabeça, que somos nós os cristãos. Quem quer ser membro de Cristo deve se deixar formar por Maria e pelo Espírito Santo. 4) A devoção a Maria é necessária porque foi no ventre dela que o Espírito Santo formou Cristo, Homem e Deus. Assim, Nossa Senhora possui o molde para formar, pela graça divina, Cristo em nossas almas. E com Maria, Cristo pode ser formado em nossas almas, pela graça, de modo rápido, fácil e suave. Sem a devoção a Nossa Senhora é impossível salvar-se, como de modo semelhante não é possível salvar-se fora da Igreja Católica. Aquele que conhece Nossa Senhora ou tem a possibilidade de conhecê-la e se dá conta ou poderia se dar conta de seu papel fundamental para a salvação, mas deixa de honrá-la e de recorrer a ela, certamente se perderá. É claro e evidente que esse papel fundamental de Nossa Senhora é completamente subordinado a NSJC e dependente d’Ele.

As citações dos Padres da Igreja e dos santos no sentido da necessidade da devoção a Nossa Senhora para alcançar a salvação são abundantes. Por exemplo, São Cirilo de Alexandria, (séc. V, P.G. 77, 1031-1034): “Oh Maria, Mãe de Deus, salve! Por ti encontram a salvação todas as almas fiéis.” São Germano de Constantinopla (séc. VIII, P.G. 98, 350): “Ninguém se salva a não ser por teu auxílio, oh Mãe de Deus! Ninguém fica livre dos perigos a não ser por meio de ti, oh Virgem fecunda!” Santo Idelfonso (séc. VII, P.L. 96, 69, De Virginit. Perp. S. M., c. 4): “Vinde comigo a esta Virgem, se tendes medo de ir, sem ela, ao inferno. Vinde, e escondamo-nos debaixo de seu manto para não nos cobrirmos, um dia, de confusão.” São Bernardo (séc. XII, II Hom. Super Missus est): “Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria… Seguindo-a não errarás, rogando-a não terás motivo para desesperar, pensando nela não cairás no erro. Se Maria te socorre, não cairás. Se Maria te protege, não temerás. Se ela te acompanha, não te cansarás. Se ela te for favorável, chegarás ao porto da salvação.” São Boaventura (séc. XIII, Comment. In Luc., c. 1, n. 70): “Quem a honra dignamente, será justificado, mas quem a esquece morrerá em seus pecados. Sim, oh doce Senhora, estão longe da salvação os que não te conhecem; mas quem persevera no tributo de honrá-la, não deve temer a perdição.” Poderíamos ainda citar São Tomás, São Bernardino de Siena e tantos outros, caros católicos. Recomendo fortemente a leitura dos livros Tratado da Verdadeira Devoção a Maria e Segredo de Maria, de São Luís de Montfort, em que ele afirma claramente a necessidade da devoção a Nossa Senhora e o modo de praticá-la. Recomendo o livro Glórias de Maria, de Santo Afonso de Ligório. Mas para concluir essas citações de santos, vejamos o que diz São Leonardo de Porto Maurício, nos seus pequenos discursos para a honra de Maria. Diz o santo: “é impossível que se salve quem não é devoto de Maria.” (Discorssetti ad onore di Maria disc. 7, n.1); e em outro lugar (disc. 16, n. 4) diz: “portanto, sede devotos de Maria, e eu vos asseguro que sereis salvos.” Assim, não há dúvida de que o ensinamento dos santos afirma a necessidade da devoção de Nossa Senhora para a salvação.

E nós podemos concluir a mesma coisa a partir da Sagrada Escritura. Já citamos a realeza de Nossa Senhora, coroada de estrelas no Apocalipse. Vemos no Santo Evangelho que o primeiro a cultuar Nossa Senhora é o Arcanjo Gabriel, ao saudá-la como faz um inferior ao superior: “Ave, gratia plena”, diz o Arcanjo. Vemos Maria honrada por Santa Isabel: “bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre”, diz a prima de Nossa Senhora. Vemos Maria honrada por uma mulher do povo que sem medo clama para Cristo diante da multidão: “bem aventurados os seios que te amamentaram e bem aventurado o útero que te portou.” É relevante o número de vezes que N. Sra. é cultuada nos Evangelhos. Finalmente, NS diz: “discípulo eis aqui a tua mãe”. Ele não diz “João, eis aqui a tua Mãe”, mas “discípulo, eis aqui a tua mãe”. Todo discípulo de Cristo deve ter Maria por mãe e deve recebê-la em sua casa, em seu coração. E deve honrá-la e respeitá-la como mãe e deve carinhosamente recorrer a tão boa mãe para obter dela o alimento espiritual, que é a graça. Todo discípulo de Cristo tem necessariamente N. Sra. por mãe e a honra e recorre a ela como a uma boa mãe, Mãe doce e misericordiosa. E NS nos entrega Maria por mãe quando já está pregado na cruz, quer dizer, no momento mais capital da história da salvação. Precisamos honrar Maria, ter verdadeira devoção a ela!

É evidente, caros católicos, que a finalidade da devoção a Nossa Senhora, como de qualquer devoção, é a união a Cristo, é a devoção a Cristo. O anjo a saúda porque ela vai se tornar Mãe de Deus. Santa Isabel a saúda porque ela já Mãe de Deus. A mulher do povo honra Nossa Senhora porque ela carregou Deus em seu ventre e o nutriu. A devoção a Nossa Senhora nos é necessária para sermos devotos de Cristo porque Cristo quis assim, como já dissemos. Ele quis que fôssemos até Ele pelo mesmo caminho que Ele utilizou para vir até nós. Nossa Senhora direciona e apresenta a Deus toda a honra que recebe de nós e alcança para nós as graças que precisamos. Quando Santa Isabel honra Maria, N. Sra. imediatamente honra Deus recitando o Magnificat, louva a Deus reconhecendo que é Ele a fonte de todo o bem, e que ela é uma pobre escrava do Altíssimo: “Minha alma engradece o Senhor, (…) pois olhou para a humildade de sua serva e fez em mim maravilhas.” Honrar Nossa Senhora é, portanto, honrar Cristo, honrar a Santíssima Trindade. Onde está Maria, lá está Cristo. Onde está Cristo, lá está Maria! Quem honra a Mãe, honra o Filho.

É evidente que a devoção a Nossa Senhora deve ser sólida e verdadeira, sincera. A devoção não é simplesmente usar algumas medalhas ou escapulários, ou dizer algumas orações. Tudo isso é bom, excelente, necessário, mas a verdadeira devoção consiste em recorrer a Maria para que ela nos converta, para que mudemos de vida. A verdadeira devoção consiste em buscar imitar as virtudes de Nossa Senhora.

Alegremo-nos, caros católicos, pois Cristo nos deu na devoção a Maria o caminho mais fácil, curto, perfeito e seguro para nos unir a Ele, união a Cristo que é a finalidade de nossas vidas. É um caminho também necessário para nos unir a Cristo. Maria é, diante de Deus e de seu Filho, uma criatura, infinitamente inferior. Mas para nós, ela é a criatura escolhida por Deus para nos levar a Cristo, para que possamos conhecê-lo e servi-lo melhor. Ela é o caminho para que os frutos da redenção operada por Cristo nos sejam aplicados. Ela nos dirige para Cristo dizendo o que disse aos servos nas bodas de Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. A devoção a Maria é ir a Jesus por Maria: ad Iesum, per Mariam. Recorramos a Nossa Senhora sempre, em todas as nossas necessidades. Recorramos a ela, para que, por ela, cheguemos a Cristo: ad Iesum, per Mariam. Maria, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa. Para chegar ao céu, precisamos nos vestir do sol, que é Cristo, devemos esmagar a lua que é o pecado e devemos ser devotos de Nossa Senhora, nossa Rainha e nossa mãe dulcíssima.

Em nome do pai, e do Filho, e do espírito Santo. Amém.

O bom samaritano e a virtude da esperança diante do desânimo na prática da religião

Sermão para o 12º Domingo depois de Pentecostes

11 de agosto de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria…

“Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?”

A pergunta do doutor da lei deve ser a pergunta das nossas vidas, caros católicos: “Mestre, o que devo fazer para alcançar a vida eterna?” Não basta perguntá-la, mas é preciso colocar a resposta em prática.

O doutor da lei chama NSJC de Mestre e lhe faz a pergunta para tentá-lo, para ver se NSJC se opõe à lei mosaica, e poder, assim, condená-lo, ou para ver se NSJC cai em alguma contradição, a fim de desacreditá-lo diante do povo. Nosso Senhor, conhecendo a malícia desse doutor da lei, deixa que o próprio doutor da lei responda. E ele o faz muito bem, mostrando conhecimento do que se deve fazer para alcançar a vida eterna, embora não pareça colocar o que sabe em prática. O doutor da lei diz que se deve amar o Senhor Deus com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças, com todo o entendimento.

É preciso que em nossas vidas, nas decisões que tomamos, nas situações em que nos encontramos, nas ações que fazemos… é preciso sempre que nos perguntemos o que devemos fazer para alcançar a vida eterna. Como nos diz o doutor da lei, confirmado por NS, devemos amar o Senhor nosso Deus de todo o coração, quer dizer, com toda a nossa vontade, querendo unicamente Deus em nossas vidas e querendo as outras coisas somente enquanto nos levam a Ele. Devemos amar o Senhor nosso Deus com toda a nossa alma, quer dizer, com todas as faculdades, com todos os sentimentos sempre ordenados para Deus, com toda nossa vida ordenada para Deus. Como nos diz São Paulo: “quer comais, quer bebais, fazei tudo para a glória de Deus.” E devemos amá-lo com todas as nossas forças, quer dizer, devemos amá-lo ao máximo. Como diz São Bernardo: a medida do amor a Deus é amá-lo sem medida. Finalmente, devemos amá-lo com todo o nosso entendimento, quer dizer, nosso amor deve ser guiado pela fé, pois para amar realmente a Deus sobrenaturalmente, a fim de alcançar a vida eterna, é preciso conhecê-lo pela fé verdadeira, pela fé católica. Amar a Deus, caros, católicos, não é algo vago, não é um sentimento mais ou menos beato, não é sentir-se em paz ou na presença de Deus. Já falamos disso várias vezes, mas insisto, pois é esse um dos principais erros dos nossos tempos, mesmo dentro da Igreja Católica. Ouvimos com muita frequência que se a pessoa se sente bem, ela ama Deus e é amada por Ele, não importando a religião. Deus está em todos os lugares, em todas as religiões, o importante é você sentir-se bem. Não, não é nada disso. Amar não é um vago sentimento, ainda que intenso. Amar é querer o bem do amado e fazer o bem para o amado. Queremos e fazemos o bem para Deus quando aderimos à religião que Ele nos revelou e quando guardamos os mandamentos de Deus e da Igreja.

Para alcançar a vida eterna, devemos amar o Senhor Nosso Deus de todo o coração, de toda a alma, com todas as nossas forças, com todo o nosso entendimento. Vejam, caros católicos, que se encontra sempre a palavra “todo” qualificando a vontade, o coração, o entendimento, as forças. Isso porque não devemos nos contentar em amar Deus pela metade ou em parte, fazendo uma partilha entre Deus e nossa vontade pessoal, entre Deus e nossos gostos pessoais, entre Deus e o mundo, entre Deus e nossos parentes. Não. Devemos, ao contrário, amar a Deus em primeiro lugar e devemos amar as outras coisas por amor a Deus, para levá-las para Deus ou porque nos levam para Deus. E, claro, se amamos a Deus, amaremos o nosso próximo para ajudá-lo em suas necessidades, sobretudo espirituais.  Amar a Deus partilhando-o com outras coisas pode ser impossível, se essa outra coisa nos faz ofender a Deus gravemente. Mas ainda que essa outra coisa não ofenda a Deus, se nosso coração está dividido, seremos tíbios, e seremos, então, presa relativamente fácil do pecado e do demônio. É preciso amar a Deus inteiramente, caros católicos, amá-lo com todo o nosso ser, e amá-lo cada vez mais.

Amar a Deus inteiramente significa esquecer as falsas máximas mundanas, significa deixar as más companhias. Amar inteiramente a Deus significa renunciar a certas diversões cada vez mais abundantes, refinadas e imorais ou anticatólicas também na doutrina. Quantos filmes, mesmo os mais acessíveis a jovens e crianças, se opõem à doutrina e moral católicas. Quantas danças pelo próprio modo de dançar ou pelas circunstâncias são ruínas para as almas. Quantas casas de diversão são verdadeiros centros de perdição. E praias e piscinas com imoral promiscuidade dos sexos e trajes sumários. Quantas revistas com tantas coisas mundanas e superficiais (as chamadas revistas femininas, por exemplo), contrárias à fé ou indecentes.  Novelas e seriados de televisão, modas indecentes, conversas ruins, brincadeiras de mau gosto, etc. (vide Royo Marín, Teología de la Perfección Cristiana, 2008, p. 297/298) Amar a Deus é renunciar a toda e qualquer diversão que de alguma forma ofenda a Deus. Amar a Deus inteiramente é suportar com paciência a zombaria e as perseguições por renunciar a tudo isso, por simplesmente fazer o bem e comportar-se cristãmente. Todavia, tudo isso é apenas o aspecto negativo de amar inteiramente a Deus, pois amar a Deus é reconhecer n’Ele a infinita bondade, a infinita misericórdia para conosco. Amar a Deus é conformar nossa vontade inteiramente à vontade d’Ele, sabendo que sua vontade é perfeitíssima. Amar a Deus inteiramente é buscar nos alegrar na prática da religião e da virtude. Amar a Deus é buscar sempre a sua maior glória. Devemos também nos lembrar daquelas palavras de NS: “aquele que ama a sua vida nesse mundo vai perdê-la, mas que aquele que aborrece a sua vida neste mundo vai conservá-la para a vida eterna” (Jo 12, 25).

Mas, padre, é impossível amar a Deus dessa forma, diriam muitos. Como renunciar a tantas coisas que quase todo mundo faz normalmente? Como conformar nossa vontade com a vontade de Deus, mesmo nas cruzes? Como educar meus filhos nesse mundo? Como eu, jovem, posso abandonar todas essas coisas que meus colegas fazem?  Nós estamos no mundo, padre, se renunciarmos a tantas coisas e buscarmos a conformidade em tudo com a vontade de Deus, seremos desprezados pelos outros, vamos sofrer muito, seremos tristes, vamos aborrecer a nossa vida. É impossível conseguir viver de modo verdadeiramente católico nesse mundo em que o pecado nos espera no nosso próximo passo. É impossível amar a Deus com todo o nosso ser. É impossível na sociedade em que vivemos e no momento de crise por que passa a Igreja. Temos que nos dividir entre Deus e o mundo. Se não o fizermos, será impossível viver. Eis aqui a tentação do desespero, caros católicos. Eis a tentação daquele que busca seguir a Cristo e que quer fazê-lo bem, mas que diante de tantas dificuldades e cruzes vai pouco a pouco desanimando, arrefecendo e tem a forte tentação de desistir. E quantos, de fato, terminam desistindo, dizendo que preferem abandonar tudo, já que não são capazes de amar a Deus inteiramente. Diante dessa tentação de desespero, é preciso reagir com a esperança sobrenatural, caros católicos.  Lembremo-nos, caros católicos, que em nenhum momento NS prometeu a paz – como o mundo a entende – aqui na terra. Ao contrário, ele prometeu a espada, ele disse que seus discípulos deveriam carregar a cruz. Mas ao mesmo tempo, Ele disse que estaria conosco até o final dos tempos e que estaria conosco todos os dias. Se Deus nos faz viver hoje, nessa sociedade, nesse momento de crise na Igreja, é porque podemos amá-lo inteiramente, é porque podemos alcançar a vida eterna. Podemos esperar com toda confiança e certeza que Deus nos dará os meios necessários para nos salvar e nos dará esses meios com abundância, se buscamos com sinceridade observar os seus mandamentos. E devemos esperar com firme confiança em Deus porque Ele é infinitamente bom e todo-poderoso. Ele é infinitamente bom. Isso significa que Deus quer que nos salvemos. Isso significa que Ele nos dará todas as graças, todos os meios para que nos salvemos. Isso significa que Ele não pode nos pedir o impossível. Deus é todo-poderoso. Isso significa que para ele nada é impossível. O que para nós sozinhos é impossível, com Deus se torna plenamente possível. É evidente que, sozinhos, nos é impossível amar inteiramente a Deus, não somente nos tempos em que vivemos, mas em qualquer tempo. Com Deus, podemos amá-lo inteiramente sempre em qualquer circunstância. Como diz Santo Agostinho: “Porque Deus não manda coisas impossíveis, mas quando manda, quer que façamos o que podemos e que peçamos o que não podemos, e Ele nos ajuda a poder”. E como diz São João: “os seus mandamentos não são pesados” (1Jo 5, 3).

Devemos ter grande e firme confiança porque Nosso Senhor Jesus Cristo é o Bom Samaritano da parábola de hoje. O homem despojado dos seus bens e ferido somos nós, a humanidade, despojada da graça pelo pecado e ferida com suas más inclinações, consequências do pecado. Aquele homem descia de Jerusalém para Jericó. Jerusalém simboliza a pátria celeste, a virtude, o bem. Esse homem deixava o caminho da virtude e viajando sozinho colocava-se em situação de perigo, pois era bem sabido que na estrada havia assaltantes. Esse homem somos nós que, seguindo muitas vezes a sugestão do mundo, da nossa vontade própria ou do demônio, deixamos muitas vezes a vida da graça, nos colocamos em ocasião de pecado e caímos, somos feridos pelo pecado, despojados da graça, da amizade com Deus. Esse homem, assaltado e ferido pela própria negligência somos nós, que por nossa culpa, por nossos descuidos nos afastamos de Deus, de Jerusalém, do céu e descemos para Jericó, para o pecado, para o inferno. Ainda assim, sabendo que esse homem era culpado de seus próprios males e sabendo que se tratava de um inimigo (Judeus e samaritanos eram inimigos e se assume que o ferido e despojado é um judeu, embora não esteja dito explicitamente), o bom samaritano o socorreu, colocando vinho e óleo nas suas feridas, levando-o para a estalagem e pagando as despesas. O Bom Samaritano é NSJC. É NSJC que, nos vendo em estado de pecado (por nossa própria culpa, como é claro), que nos vendo inimigos de Deus, portanto, inimigos d’Ele pelos nossos pecados, vem em socorro. Quanta bondade! Quanta misericórdia! Nosso Senhor coloca o vinho para purificar nossas feridas, fazendo-nos expiar por elas por meio dos sofrimentos, e das cruzes. Nosso Senhor coloca o azeite, nos restituindo a graça, nos auxiliando nas nossas provações, tornando nosso jugo suave e leve. Ele nos leva para a estalagem que é Igreja, em particular nos leva para a confissão. É Ele quem paga, em primeiro lugar, pelo nosso estado de pecador. Ele paga sofrendo e morrendo na cruz por nós. Bondade infinita! Misericórdia infinita! A parábola do Bom samaritano deve nos dar, caros católicos, grande esperança! Vejamos o que Cristo faz com aquele que ainda é seu inimigo. Muito mais fará com aquele que busca servi-lo com todo o seu ser. Cabe a nós implorar o socorro desse Bom Samaritano e deixar que Ele nos salve. E, quando por infelicidade cairmos, procuremos na Estalagem, que é a Igreja, o vinho e o azeite, que é a confissão dos nossos pecados. As quedas – que devemos procurar evitar a todo custo – não devem nos desanimar, ou nos fazer desesperar, ou diminuir nossas práticas religiosas. Devemos nos levantar para servir a Deus com maior vigor e afinco. Quando vier a tentação do desespero, de desistir, recitemos confiadamente o ato de esperança, praticando a virtude oposta a esse pecado. Não devemos arrefecer, não devemos abandonar nossas práticas devocionais, mas devemos mantê-las e até aumentá-las, se for possível.

Amar a Deus inteiramente, caros católicos, é, portanto, perfeitamente possível. Não sozinhos. Isso seria pelagianismo, quer dizer, seria acreditar que podemos nos salvar sem a ajuda divina, sem a graça. A coleta de hoje nos mostra que só podemos servir a Deus dignamente em virtude de um dom que Ele nos dá. Não podemos fazer nada de bom na ordem sobrenatural sem o auxílio da graça. As orações da Missa Tradicional são anti-pelagianas por excelência, pois invocam com ênfase o auxílio da graça. Aqueles que se deixam formar pelas orações da Missa Tradicional estarão vacinados contra qualquer tentação de pelagianismo ou autossuficiência. As orações da Missa Tradicional são a base para a doutrina da graça de Santo Agostinho, doutrina que é anti-pelagiana por excelência. E com o auxílio da graça, podemos correr ao céu, evitando as ofensas a Deus. Diante das dificuldades, não desanimemos, não nos desesperemos. Diante das dificuldades, devemos ter coragem! Diante das dificuldades, esperança na bondade e na onipotência divinas que nos dá todos os meios para nos salvarmos. Façamos a nossa parte rezando, pedindo o auxílio divino, nos esforçando para amar inteiramente a Deus, pois é isso que temos que fazer para alcançar a vida eterna.  “Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?” Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças, com todo o teu entendimento.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A Prudência e os erros opostos. Ou: A parábola do feitor iníquo.

Sermão para o Oitavo Domingo depois de Pentecostes
14 de julho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

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[Breve Introdução à Missa Solene]

Estamos hoje no 8º Domingo depois de Pentecostes. É uma grande graça poder celebrar uma Missa Solene, é uma grande graça para vocês poder assistir a uma Missa Solene, assistir e se unir àquilo que há de mais belo deste lado do céu. Se uma Missa Rezada ou uma Missa cantada já é bela, quanto mais bela é uma Missa Solene, com todos os seus ritos. São Tomás diz que os ritos servem para mostrar a importância do que se está realizando no sacramento, bem como para instruir os fiéis. Podemos dizer que os ritos são também sacramentais. Pela solenidade da Missa de hoje, pela doutrina católica que ela exprime de maneira sublime (por exemplo, peço que vocês reparem como ela exprime a hierarquia da Igreja, tal como instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo), pela excelência dos ritos, podemos nos preparar de maneira excelente para receber com grande abundância os frutos da Missa, sobretudo o perdão de nossos pecados. Aproveitemos, caros católicos, para assistir bem a essa Santa Missa e nos unir ao sacrifício de Cristo oferecendo-nos a nós mesmos junto com Ele. Não sabemos quando teremos novamente essa graça.

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[Sermão]

O Santo Evangelho de hoje, caros católicos, nos traz algumas dificuldades, diante das quais muitas pessoas tiram conclusões erradas ou precipitadas. Como pode o senhor elogiar o feitor, o administrador iníquo? Antes de falarmos desse elogio e da prudência, é preciso lembrar que ninguém pode interpretar a Sagrada Escritura segundo suas próprias ideias e gostos, ninguém pode ir contra o sentido e a interpretação que a Igreja sempre deu e dá, pois compete à Santa Madre Igreja julgar e interpretar as Sagradas Escrituras.  São Francisco de Sales diz que se trata de uma profanação feita às Sagradas Escrituras o fato de pretender que o entendimento das Escrituras é demasiado fácil. Assim, a leitura das Sagradas Escrituras não deve ser feita indistintamente por todos. São Pedro diz, por exemplo, que há, nas cartas de São Paulo, “algumas coisas difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes na fé adulteram (como fazem também com outras partes das Escrituras) para sua própria perdição” (2Pe III, 16). Portanto, na Sagrada Escritura há passagens difíceis, que podem levar as almas à perdição em virtude de uma falsa interpretação. É preciso sempre ler as Sagradas Escrituras com o Magistério da Igreja ao lado, pois foi à Igreja que Deus revelou toda à verdade, e cabe à Igreja dar o sentido verdadeiro da Palavra de Deus contida nas Sagradas Escrituras.

Venhamos à parábola. O feitor iníquo é o homem pecador, o homem que administrou mal os bens que lhe foram dados por Deus. Deus nos deu vários bens para administrarmos: a inteligência, a vontade, os sentimentos, os bens materiais. O administrador iníquo é, portanto, o homem que usa mal sua inteligência, aderindo ao erro, é o homem que usa mal sua vontade, dirigindo-a ao que é contrário à vontade de Deus. É o homem que não ordena seus sentimentos e paixões pela razão iluminada pela fé. Trata-se do homem que usa mal seu corpo, por exemplo, pelos pecados de impureza, pecados que fazem dele como um animal irracional. Trata-se do homem que usa mal os bens materiais que possui. O homem pecador é um administrador infiel dos bens que lhe foram dados por Deus, pois o pecador usa os bens dados por Deus não para a maior glória da Santíssima Trindade, para a salvação da própria alma e para a salvação do próximo, mas ele os utiliza para satisfazer seus próprios desejos, contrários ao desejo perfeito do seu senhor, que é Deus.

Diante dessa má administração, nada mais justo do que sofrer a consequência: cavar, mendigar, quer dizer, sofrer, fazer penitência, deixar o pecado e praticar a virtude esforçando-se para isso e pedindo isso para Deus. Todavia, o administrador iníquo, sem arrependimento do mal que cometeu, escapa dessa justa consequência com uma grande habilidade, uma habilidade que implica mais um pecado grave, mas que é uma grande habilidade. Diante disso, o senhor louva não a ação pecaminosa propriamente dita de reduzir injustamente a dívida dos devedores, mas a habilidade, a prudência do feitor.

A prudência consiste justamente em ordenar os meios para alcançar um determinado fim. A prudência não é ter medo, como muitos pensam. A prudência consiste em escolher os meios mais adequados para se chegar a um determinado objetivo. Agora, a prudência será uma boa prudência se ela escolhe meios lícitos para alcançar um objetivo lícito. A boa prudência é aquela que, em última instância, determina os melhores meios para que alcancemos a vida eterna. A boa prudência é aquela que dita o que se deve fazer em determinado momento para cumprir a vontade de Deus, para alcançar a vida eterna, levando em conta todas as circunstâncias e depois de madura reflexão. A má prudência, por outro lado, é aquela que dispõe os meios para fazer um pecado, para alcançar um fim ruim, oposto a Deus e à nossa salvação. A má prudência é também aquela que escolhe meios ruins para atingir um fim, ainda que esse fim seja bom. Dessa forma, fica evidente que a prudência do administrador da parábola é uma má prudência, que escolhe meios pecaminosos para atingir seu fim, que é escapar de uma justa punição. Dessa forma, o homem rico elogia não a ação, que foi desonesta, mas a capacidade, a indústria, a inteligência do feitor infiel em dispor os meios para atingir seu fim e ele o faz para que tenhamos a mesma habilidade, mas em vista de fazer o bem. Da mesma forma, poderíamos admirar a habilidade de um assaltante de banco em conseguir roubar milhões de reais sem que ninguém perceba, sem que um alarme sequer dispare, embora condenemos veementemente a ação do roubo. Nós devemos imitar esse administrador iníquo, mas com uma boa prudência, uma prudência que escolhe os meios mais adequados para chegarmos ao céu. Uma prudência que nos faz evitar o pecado e que nos faz sempre agir em vista do céu. Que fique claro, então, que o senhor – que na parábola é Deus – não faz o elogio do pecado ou da iniquidade, mas ele elogia a inteligência, a habilidade, a prudência do administrador em dispor os meios para atingir seu fim. Ele elogia o feitor infiel para nos mover a agir com muita prudência, com muita sagacidade, mas para o bem, escolhendo meios bons, meios lícitos a fim de praticarmos bem nossos deveres de estado e sempre tendo como objetivo último a vida eterna. Para tanto, devemos conhecer melhor o que é a virtude da prudência e os vícios opostos a ela.

A virtude da prudência é a virtude que, apoiada sobre a fé, inclina nossa inteligência a escolher, em toda e qualquer circunstância, os melhores meios para atingirmos nossos objetivos, sempre tendo em vista nossa finalidade última que é o céu, a vida eterna. Dessa forma, a verdadeira prudência sobrenatural nunca escolhe meios que nos impeçam de chegar ao céu ou que ofendam a Deus. A verdadeira prudência nos faz buscar, sob a luz da fé, os melhores meios para nos salvarmos. A virtude da prudência é indispensável para o exercício das outras virtudes, para o exercício da justiça, da temperança, da fortaleza, indicando a melhor maneira de exercê-las. É a prudência que dirige todas as outras virtudes, a fim de que se evitem os pecados por defeito ou por excesso. Sem a prudência, como saber, por exemplo, se é melhor calar ou reagir diante de uma adversidade? A prudência é necessária para conciliar virtudes que parecem contrárias, como a justiça e a misericórdia, a mansidão e a força, a penitência e o cuidado legítimo com a saúde, o recolhimento e o zelo apostólico, etc. É a prudência que nos indicará a maneira correta de proceder para conciliar essas virtudes sem que elas se destruam mutuamente. A prudência é também indispensável para evitar o pecado, pois para evitar o pecado é preciso conhecer as causas e as ocasiões do pecado e escolher bem os remédios. É exatamente isso que faz a prudência. Com a experiência do passado, próprio e alheio, e a partir do estado atual da alma, a prudência vê o que é ou será para nós uma ocasião de pecado e sugere, então, os melhores meios para que se evite a ocasião de pecado, o melhor meio para vencer as tentações, os remédios necessários. Sem essa prudência, quantos pecados são cometidos!

Para a perfeita prática da prudência, que nos é tão necessária é preciso que tenhamos  (i) a memória do passado, pois o conhecimento dos êxitos e fracassos passados próprios e alheios nos orientam muitíssimo para saber o que devemos fazer aqui e agora. A experiência é mãe da prudência. Por isso, as pessoas jovens não são, em geral, prudentes, por falta de experiência. Além da memória do passado, é preciso (ii) a inteligência do presente, para saber discernir se o que nos propomos a fazer aqui e agora é bom ou mau, lícito ou ilícito, conveniente ou inconveniente. Para uma prudência perfeita, é preciso também a (iii) docilidade, para pedir e aceitar o conselho de pessoas sábias – sábias do ponto de vista católico – e experimentadas, pois ninguém pode pretender saber resolver bem todas as situações que surgem. É necessária para a virtude da prudência também a (iv) sagacidade, que nos faz ver por nós mesmos com rapidez e exatidão o que devemos fazer nos casos urgentes, em que não temos ocasião de pedir conselho. Nos casos não urgentes, será necessária a (v) reflexão madura, proporcionada à situação e à questão. Precisamos também da (vi) providência, que é enxergar longe e ter bem presente qual é o nosso fim último, sem nos limitar a objetivos instantâneos. A providência deve também nos fazer prever as consequências boas e ruins das nossas ações. É necessária igualmente a (vii) circunspecção, que é a atenta consideração das circunstâncias para julgar se é conveniente ou não realizar tal ato diante de tais circunstâncias. Há atos que, considerados em si mesmos, são bons e convenientes para atingir o fim pretendido, mas que, em razão de circunstâncias especiais, poderiam se tornar contraproducentes, ou perniciosos. Finalmente, é preciso a (viii) precaução, para afastar os obstáculos que podem comprometer a consecução do fim. A precaução deve nos levar, por exemplo, a nos afastar das más companhias, que nos influenciam mal e que nos distanciam da nossa salvação. Em decisões importantes, todos esses elementos devem estar presentes.

Como vimos, a prudência consiste em refletir sobre quais são os meios mais aptos para se atingir um objetivo bom, em escolher os meios mais aptos e finalmente em decidir colocar em prática esses meios.  À prudência se opõem, então, a precipitação, a inconsideração e a inconstância. A precipitação nos leva a não refletir devidamente e, sem a devida reflexão, faremos um juízo do que é bom ou ruim de forma precipitada, apressada, e levados não pela razão, mas pelas paixões ou caprichos. Já a inconsideração nos faz escolher mal. Embora tenhamos talvez refletido, preferimos escolher fazer isso ou aquilo pelo simples fato de demandar menos esforço, por exemplo, ou porque nos agrada mais. Quanto à inconstância, ela no faz desistir facilmente, por motivos indevidos, das decisões e propósitos que havíamos feito após devida reflexão e devido juízo. A precipitação, a inconsideração e a inconstância são causadas principalmente pela luxúria, que é o vício que mais obscurece a razão, pois aplica veemente nossa alma às coisas sensíveis, impedindo que a inteligência considere e julgue devidamente as coisas. Em nossa sociedade dominada pela luxúria, constatamos claramente a dificuldade das pessoas em tomar decisões após a devida reflexão, vemos a dificuldade das pessoas em julgar corretamente as coisas, vemos a inconstância das pessoas. Também se opõe à prudência a negligência, que consiste na ausência de decisão eficaz depois de ter refletido devidamente. O precipitado não pensa devidamente sobre o que deve fazer. O inconsiderado escolhe mal o que deve fazer. O inconstante não coloca em prática o que decidiu. O negligente nem chega a decidir. Todos são imprudentes.

Além da precipitação, da inconsideração, da inconstância e da negligência, se opõem à prudência três vícios que se assemelham falsamente a ela: a prudência da carne, a astúcia e a solicitude excessiva pelos bens terrenos. A (i) prudência da carne consiste em uma habilidade para encontrar os meios oportunos para atingir fins que se opõem ao nosso fim último, para atingir fins que não se subordinam aos mandamentos de Deus. A prudência da carne encontra os meios oportunos para satisfazer as paixões desordenadas de nossa natureza ferida pelo pecado original. A prudência do administrador da parábola é claramente uma prudência da carne. Já a (ii) astúcia é uma habilidade especial para alcançar um fim, bom ou mal, mas por meios falsos, simulados. Ainda que o fim seja bom, os meios devem ser também sempre bons, e justos, e verdadeiros. Portanto, a astúcia, que usa meios simulados e vias falsas é pecaminosa. A astúcia pode ser praticada com as palavras (dolo) ou com ações (fraude). Finalmente, se opõe à prudência a (iii) solicitude excessiva pelos bens terrenos, se colocamos esses bens terrenos como o fim a ser buscado, ou se para buscá-los começamos a negligenciar a nossa vida espiritual, ou se não temos confiança na providência divina, temendo que nos falte o necessário, se fizermos o que temos que fazer. Assim, são imprudentes em razão da solicitude excessiva pelos bens terrenos, por exemplo, os que não confiam em Deus e que utilizam métodos anticoncepcionais, que se opõem à natureza humana.

Após considerar o que é a prudência e os vícios opostos, devemos saber o que é necessário para progredir na virtude da prudência. Devemos empregar alguns meios. Antes de tudo, é preciso rezar e pedir a Deus para que nos conceda a graça de uma verdadeira prudência sobrenatural, invocando o Espírito Santo, rezando para Nossa Senhora, para Nossa Senhora do Bom Conselho, por exemplo. Devemos, para progredir na prudência, sempre refletir de modo proporcional à importância da decisão a ser tomada, sem nos deixar levar pelo ímpeto da paixão, do sentimento, do capricho, mas, sempre guiados pelas luzes da razão iluminada pela fé. Devemos considerar com calma as consequências boas e más que se seguirão de tal ação. Devemos perseverar nos bons propósitos, sem nos deixar levar pela inconstância ou negligência. Devemos colocar em prática os bons propósitos assim que possível, do contrário vamos arrefecendo. Devemos nos manter castos e puros (cada um segundo o seu estado), pois, como vimos, a impureza prejudica gravemente a prudência, obscurecendo nossa inteligência. Devemos vigiar contra a prudência da carne, que busca pretextos e sutilezas para nos eximir do cumprimento do dever. Devemos sempre proceder com simplicidade e transparência, evitando toda simulação ou engano. Devemos ordenar à glória de Deus e à nossa salvação todas as nossas ações, pois fomos criados para conhecer, amar e servir a deus. Não age prudentemente quem de alguma forma age se opondo a essa finalidade. Devemos imprimir em nossa alma uma máxima, que nos recordará sempre a agir tendo em vista esse fim último. Por exemplo: “de que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a sua alma?

Na parábola de hoje, o senhor elogia a prudência do administrador iníquo, para nos mostrar a habilidade, a capacidade e a eficácia dos filhos das trevas em alcançar seus maus objetivos. É grande, por exemplo, a habilidade dos defensores da cultura de morte. Eles são de uma grande habilidade para implantar o pecado. Se os deputados e senadores não querem aprovar uma lei que permita o aborto em qualquer caso, porque os congressistas temem não serem eleitos depois, os abortistas recorrem aos tribunais, que decidem em favor do aborto. Eles recorrem ao poder executivo, para que sejam feitas normas que ampliem o acesso ao aborto nos casos não punidos pela lei. Eles fazem leis suficientemente vagas para incluir nelas a possibilidade livre de aborto, etc. Se o Congresso não quer aprovar uma lei para o casamento homossexual, eles impõem tal união à sociedade por meio de decisão do Conselho Nacional de Justiça, que obriga os cartórios a registrarem tais uniões, etc. Os filhos das trevas são muito hábeis na prudência da carne, para buscar aquilo que ofende a Deus e que prejudica a sociedade, a fim de satisfazerem as paixões, a fim de implementarem uma ideologia diabólica. Nós devemos imitar a habilidade deles, mas para o bem, buscando um fim bom, e buscando esse fim bom com meios igualmente bons e justos, sem astúcia, sem enganação. Devemos buscar os melhores meios e executar com afinco esses meios, com a finalidade de que Nosso Senhor Jesus Cristo reine em nossas almas, para que reine na sociedade, para que Ele reine nas nações. Devemos sempre agir com prudência, tendo em vista sempre a nossa finalidade aqui na terra, que é a salvação da nossa alma. Devemos agir com prudência, refletindo, escolhendo os meios mais aptos, tomando a decisão de colocar em prática esses meios para sermos eternamente felizes no céu. Assim, no dia do juízo, Nosso Senhor poderá nos dizer: fidelis servus et prudens intra in gaudium domini tui. Servo fiel e prudente, entra na alegria do Senhor. (Mescla de São Mateus XXIV, 45 e XXV, 21)

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] A ira santa e a paciência imprudente

Sermão para o Quinto Domingo depois de Pentecostes
23 de junho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

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“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus.” “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás e quem matar será condenado em juízo. Pois eu vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo.” (Mateus V, 21)

Neste trecho do Sermão da Montanha, que é o resumo da Lei Evangélica – lei do amor a Deus e ao próximo -, Nosso Senhor, legislador supremo, que aperfeiçoa a lei antiga e condena as interpretações erradas dadas pelos fariseus e escribas, mostra o valor profundo do quinto mandamento.  Não matar é insuficiente. É preciso cortar o mal em suas origens, pela raiz, é preciso coibir a ira, causa do homicídio.

O divino legislador parece, porém, violar a própria lei por Ele estabelecida. Pouco antes de estabelecer o perfeito sentido do quinto mandamento, Nosso Senhor atacou e condenou os fariseus, dizendo que a justiça deles era insuficiente para entrar no céu. Mas não somente isso: Nosso Senhor expulsa os vendilhões do templo com ira e condena os fariseus chamando-os de hipócritas, de cegos, de serpentes, de víboras, de orgulhosos. Haveria, então, uma contradição entre o preceito dado por Cristo e a sua atitude face aos fariseus?

A contradição, claro, é somente aparente. Para resolvê-la, devemos compreender o verdadeiro sentido do preceito e conhecer quem eram os fariseus e os escribas. Como explicam todos os Padres da Igreja baseados no texto grego do Evangelho de São Mateus, o que Nosso Senhor proíbe como pecado é a ira sem motivo. A ira é o sentimento, a paixão, que nos move a agir para restabelecer a ordem lesada por uma injustiça, para defender um bem que é atacado, uma verdade que é atacada. Assim, se esse movimento de cólera se dirige contra um verdadeiro mal a fim de restabelecer a justiça, a verdade ou a virtude por meios lícitos e dentro dos devidos limites, a ira não somente não é proibida, mas é mesmo louvável porque, neste caso, ela é conforme à razão e à moral. A ira encontra sua origem no amor do bem e da justiça. Quando o bem ou a justiça são atacados, nada mais virtuoso do que defendê-los dentro dos devidos limites. A ira deve, então, ser dirigida pela razão e voltar-se contra o mal, contra o vício, contra o pecado, que são uma ofensa a Deus, nosso maior bem. E face ao pecado e ao vício, a ausência de ira pode ser um pecado porque mostra a falta de amor por Deus. O preceito de Nosso Senhor – “todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo” – encontra seu verdadeiro sentido quando se compreende desse modo: todo aquele que se irar contra seu irmão, sem motivo, será condenado em juízo.

Resta saber se a ira de Nosso Senhor relativa aos fariseus é justa ou não.  Para tanto, é preciso conhecê-los. Fariseu quer dizer separado e comumente se pensa que os fariseus são aqueles que cumprem com exatidão a lei de Deus. Com frequência, católicos sérios são acusados de serem fariseus por buscarem, apesar de suas inúmeras fraquezas e defeitos, praticar bem a lei de Cristo, opondo-se às leis desse mundo. Ora, se os fariseus fossem simplesmente fiéis observadores da Lei de Deus, Nosso Senhor não teria razão para repreendê-los e condená-los, mas sim para elogiá-los dizendo: “servos bons e fiéis entrem na alegria do Senhor”. Nosso Senhor observou perfeitamente a Lei Mosaica e Nossa Senhora também. Seriam eles fariseus? Os fariseus não são aqueles que observam perfeitamente a lei de Deus.  Ao contrário, os fariseus não praticavam a lei dada por Deus e não deixavam os outros praticá-la: em primeiro lugar porque os fariseus e escribas – seguindo tradições puramente humanas, inventadas por eles, e interpretando a Lei segundo seus gostos – violavam essa mesma lei. Sob pretexto de cumprir tais tradições, a lei dada por Deus era desprezada. Sabemos que nenhuma lei humana, nem mesmo a lei de um país pode contrariar a lei estabelecida por Deus. Assim, inventaram uma consagração de certos bens a Deus para não ajudar os pais, evitando perder, dessa forma, certa riqueza (Marcos VII, 11), e se opondo ao quarto mandamento. Em segundo lugar, os fariseus violavam a lei porque praticavam uma religião puramente exterior, em que a pureza exterior substituía a santidade interior. Assim, eles pagavam o dízimo de todas as ervas (o que era bom e louvável), mas negligenciavam a justiça e a misericórdia (Mateus XXIII, 23). Eram hipócritas, bonitos por fora como um túmulo pintado de branco, mas no interior cheio de podridão. Finalmente, os fariseus violavam a lei pelo orgulho: todas as suas boas obras eram para ser vistas pelos homens e não por amor a Deus, em franca oposição ao que é preciso fazer, pois “quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (I Cor X, 31) . Com essa doutrina, os fariseus não entravam no céu e também não deixavam os outros entrar, uma vez que eram os guias do povo. Eram, então, cegos guiando cegos. Haveria maior mal do que esse, haveria maior ofensa a Deus do que essa: impedir que os outros entrem no céu?

Nosso Senhor Jesus Cristo – que amava a Deus da maneira mais perfeita possível e que buscava a salvação das almas – não poderia ficar impassível face à péssima doutrina dos fariseus. Ele, sendo bom, amava a justiça, e a justiça lesada pede reparação. Assim, a ira de Nosso Senhor contra os fariseus é, em realidade, virtuosa porque ela tem um motivo perfeito: os direitos de Deus atacados e a salvação das almas impedida pela doutrina dos fariseus e escribas. É importante sabermos que existe uma ira santa. Muitos católicos pensam que a santidade consiste numa total indiferença face ao mal, no fato de não reagir de maneira alguma, na tolerância da diferença. Tudo isso baseado em um falso conceito de mansidão. A mansidão não impede a ira, mas a regula segundo a reta razão iluminada pela fé. De um lado, a mansidão impede a ira desordenada que pode ser pecado mortal ou venial, segundo exceda grave ou levemente os limites impostos pela razão na correção do próximo, na reparação da justiça, na defesa de um bem, de uma verdade. Do outro lado, ela impede uma excessiva brandura, originada do amor por uma falsa paz.  O exemplo de santidade e de mansidão é Cristo e Ele mostrou que em determinados momentos uma ira santa é indispensável. Assim, Santo Agostinho nos diz que aquele que não se enfurece (de maneira ordenada), quando há uma causa para isso, peca por uma paciência imprudente que favorece os vícios, aumenta a negligência e encoraja o agir mal. A ausência da ira seria então pecar contra a justiça e a caridade. Nós católicos e, sobretudo, aqueles constituídos em autoridade deveríamos, então, nos levantar para defender os direitos de Deus e nos opormos, com vigor, às leis e doutrinas iníquas: divórcio, aborto, contracepção, união contra a natureza, entre tantas outras… A nossa paciência imprudente já permitiu males enormes…

Todavia, a ira para ser santa deve ser prudente.

Ela deve ter como causa uma verdadeira injustiça. Ela deve proceder da inteligência e da vontade e não de um sentimento impetuoso e descontrolado. Ela tem que ser dominada pelo homem e não o homem ser dominado por ela. Se nossa inclinação é de falar bruscamente, com voz destemperada e expressões indevidas, com grosserias, palavras de baixo calão, nossa ira é desordenada, pecaminosa. Se nossa ira nos leva a agressões ou destruição do bem alheio, ela é pecaminosa (a não ser, claro, em caso de legítima defesa, ou em caso de exercício da legítima autoridade, mas sempre proporcionalmente ao mal que é combatido).

A ira santa deve ser exercida quando há alguma esperança de êxito e principalmente por aqueles que têm obrigação de denunciar a injustiça e de restabelecer a ordem. E, ainda que não haja a possibilidade de êxito, às vezes é preciso para não escandalizar os outros, dando a impressão de que estamos de acordo com o mal. Ela deve ser sempre proporcional ao mal causado, como já dissemos.

Ela deve ter em vista mais o bem comum e a glória de Deus do que o bem privado. A ira santa não deve ter como objeto os males e as pequenas injustiças que sofremos porque eles têm para nós algo de justo – pois merecemos ser punidos pelos nossos pecados – e de bom – porque se os aceitamos de bom grado, Deus nos conduz à vida eterna. Devemos ter muita paciência nas tribulações, unindo-nos a Nosso Senhor. Podemos, claro, buscar afastar essas adversidades e a causa do sofrimento, mas sempre com serenidade e com submissão à vontade de Deus. Diante do sofrimento e das adversidades, que nossa ira nunca se volte contra Deus, que é o autor de todo o bem.

Na ira santa, não devemos desejar o mal do pecador, mas o bem que é sua correção e o bem que é o restabelecimento da ordem violada – que no mais das vezes passa, claro, pela punição daquele que fez o mal.

Atenção. É muito fácil equivocar-se na apreciação dos justos motivos que justificam a ira e é muito fácil perder o controle no exercício dela. É preciso estar, então, muito alerta e, na dúvida, o melhor é inclinar-se à doçura e não à ira. 

Assim, Nosso Senhor, verdadeiramente manso, soube perfeitamente o momento de irar-se ou e não irar-se, pois muitas vezes o remédio mais eficaz diante de um mal não é a ira. Nosso Senhor irou-se contra os fariseus, pertinazes no erro e no pecado, mostrando a falsidade da doutrina desses mestres hipócritas, a fim de conduzir o povo a Deus e a fim de tentar converter os próprios fariseus. Mas Ele não se encolerizou contra Herodes ou Pilatos no momento de sua paixão, pois não convinha que Nosso Senhor reagisse: sua ira não os tiraria do mal no qual estavam afogados e convinha que ele morresse para nos salvar. Nosso Senhor também não se encolerizou nem com os apóstolos lentos para compreender os seus ensinamentos nem com outros pecadores (Maria Madalena, Zaqueu): neste caso, Ele sabia que o melhor remédio para conduzi-los a Deus era a paciência e a doçura e não ira.

Como diz, então, o Salmo: “Irai-vos, mas não pequeis”. Irai-vos por uma causa justa, irai-vos dentro dos justos limites. Irai-vos sem deixar se levar pela ira. Irai-vos mantendo sempre o controle da razão iluminada pela fé e pela caridade. Irai-vos amando o próximo, afastando o ódio pelos outros. Na dúvida, vale mais inclinar-se à doçura.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Nota do Editor: os destaques são nossos.]

[Sermão] É preciso rezar, e rezar bem.

Sermão para o Quinto Domingo depois da Páscoa
5 de maio de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

***

É o terceiro domingo seguido, caros católicos, em que Nosso Senhor Jesus Cristo nos fala de sua subida aos céus, de sua Ascensão, que será comemorada na próxima quinta-feira, quarenta dias depois de sua Ressurreição. A Ascensão de Nosso Senhor é, à primeira vista, um motivo de tristeza para os Apóstolos e para os discípulos do Mestre, ainda muito voltados para as coisas terrenas. Da mesma forma, poderíamos pensar que, para nós, nossa alegria seria muito maior com a presença de Nosso Senhor na Terra. Todavia, era preciso que Cristo subisse ao Pai, para sentar-se à direita dEle – nem acima, nem abaixo, mas à direita – para manifestar a igualdade de natureza com o Pai. Era preciso que Cristo subisse aos céus também para manifestar, definitivamente, que seu sacrifício sobre a cruz foi perfeitamente aceito por Deus. Além disso – manifestar a divindade de Cristo e a aceitação de seu sacrifício – a Ascensão tem também consequências excelentes para nós. Nosso Senhor afirma que é bom para nós que ele suba ao Pai, a fim de poder enviar o Paráclito, que ensinará toda a verdade aos apóstolos,  mas também porque no céu Ele intercederá por nós diante do Pai. Assim como o sumo sacerdote do Antigo Testamento entrava no Santo dos Santos para interceder pelo povo, Cristo entra na glória celestial para interceder por nós, como nos diz São Paulo (Hebreus VII, 25), pois sua simples presença, com sua natureza humana e as chagas gloriosas de seu sacrifício, é já uma intercessão por nós. Deus, vendo a natureza humana de Cristo, terá misericórdia daqueles que Cristo veio salvar, terá misericórdia de nós.

Tendo sido fortalecido na fé quanto à divindade de Cristo e de sua intercessão por nós no céu, podemos dirigir, com toda confiança, nossas orações a Deus. E tudo o que pedirmos em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, explicitamente ou implicitamente, obteremos, nos diz Ele no Evangelho de hoje. Todavia, nosso Salvador diz em outra ocasião que no dia do juízo haverá muitos que invocaram seu nome, mas que não se salvaram. E quantas vezes, de fato, nossas orações não são atendidas, apesar de invocarmos a mediação de Cristo. Isso se explica facilmente, caros católicos. Não basta rezar, invocando o nome de Nosso Senhor. É preciso rezar bem. O apóstolo São Thiago nos diz claramente: “Vós pedis e não recebeis porque pedis mal” (Thiago IV, 3).

***

Para rezar bem, é preciso primeiramente, que nossa alma esteja em boas disposições. Em seguida, é preciso pedir coisas boas, quer dizer, coisas que nos dirigem para Deus. Finalmente, é preciso pedir de um modo digno da majestade divina à qual nos dirigimos. Se seguimos esses três pontos, nossa oração será atendida.

É preciso, então, que estejamos bem dispostos. Isso significa que, quando rezamos, devemos estar em estado de graça, em amizade com Deus ou pelo menos não devemos estar endurecidos no mal, se por infelicidade nos afastamos de Deus pelo pecado. Deus não costuma ouvir o homem que, endurecido no mal e sem se preocupar com o estado de sua alma, recorre a Ele somente para pedir coisas temporais. E se às vezes Deus o ouve, pode se tratar mais de uma punição do que de um favor propriamente dito. Evidentemente, se o pecador começa a querer detestar seu pecado e começa a voltar-se para Deus, Ele, infinitamente bom e misericordioso, olhará com compaixão e amor para o pecador e lhe dará graças de conversão, penitência e perdão. Para rezar bem devemos estar bem dispostos.

Em seguida, devemos pedir algo que é bom. Acabamos de ouvir Nosso Senhor dizer no Evangelho: tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome, Ele vos dará. Ora, Deus, sendo a bondade perfeita, nos dá tudo aquilo que pedimos, desde que isso seja uma coisa boa. Se Ele nos desse algo ruim, Ele estaria em contradição com sua bondade infinita. E uma coisa é boa nessa terra se ela nos ajuda, de um modo ou de outro, a ganhar o céu. Assim, quando pedimos a nossa salvação ou coisas necessárias para a nossa salvação – como as virtudes, por exemplo, ou quando pedimos para vencer um vício – nós podemos estar seguros de que seremos atendidos, se estamos bem dispostos e se observamos as outras condições das quais falaremos em breve. Podemos também e devemos pedir coisas temporais (como a saúde, por exemplo, e bens materiais). Mas como essas coisas podem tanto nos aproximar quanto nos afastar de Deus, com muita frequência Ele não nos concede esses bens temporais, pois eles nos afastariam de sua divina majestade. Vale muito mais ser doente e suportar em união com Deus e com paciência uma doença do que estar com saúde, mas utilizar essa saúde para fazer o mal. Assim, quando pedimos coisas temporais a Deus, devemos nos submeter inteiramente à sua divina sabedoria, que poderá nos conceder ou negar tais bens em virtude da utilidade ou não deles para a nossa salvação. E Ele sabe muito melhor do que nós o que é útil para nossa salvação. Dessa forma, nossa oração deve ter por objeto todo bem espiritual que nos dirige para a nossa salvação. Nossa oração pode ter por objeto também as coisas temporais, sabendo que Deus pode atender a essa oração ou não, na medida em que esses bens temporais são bons ou não para a nossa alma. Para rezar bem, é preciso, então, uma boa disposição e é preciso pedir coisas boas. Santo Agostinho diz que aquele que pede coisas contrárias à salvação, não as pede em nome de Cristo, por mais que o nome de Nosso Senhor seja invocado.

Além de ter uma boa disposição e de pedir o que é bom, devemos pedir de uma maneira que seja digna da majestade divina à qual nos dirigimos. Isso quer dizer que devemos rezar com uma verdadeira piedade. Essa piedade não se confunde com um ardor mais ou menos sentimental. Ao contrário, essa piedade se realiza com a atenção, com a humildade, com a confiança e com a perseverança.

Devemos, então, rezar com atenção: a distração voluntária – enfatizo bem: voluntária – acompanha muito mal o pedido de algo que não nos é devido. Como desejar que Deus ouça os nossos pedidos, se nós mesmos não escutamos aquilo que estamos dizendo? Se rezamos sem atenção, com sonolência, pensando em mil coisas alheias à oração, já não se trata de oração, pois nossa inteligência e vontade se aplicam a outra coisa. Honramos Deus com os lábios, mas não com o nosso coração, com nosso espírito. Assim, devemos evitar as distrações voluntárias e combater as distrações involuntárias. E, se por fraqueza, não conseguirmos vencer as distrações involuntárias, nossa oração será, mesmo assim, plenamente agradável a Deus, pois fizemos o possível, com generosidade, para afastá-las, combatendo-as. Para evitar as distrações, é preciso escolher, na medida do possível, as circunstâncias que favoreçam a oração. Circunstâncias de lugar, horário… Ao rezarmos, devemos evitar também toda precipitação, rezar muito rápido, comendo as palavras… Uma Ave-Maria bem dita honra mais a Nossa Senhora e dá mais frutos do que 100 rezadas de qualquer jeito. Rezar com atenção demanda esforço e paciência. Não devemos desistir sob pretexto de que não conseguimos; devemos progredir, ainda que lentamente.

Não basta rezar com atenção, devemos rezar com humildade. A Sagrada Escritura nos ensina que Deus resiste aos soberbos, mas que Ele dá a sua graça aos humildes. Devemos, então, quando rezamos, nos apresentar diante de Deus como o publicano, reconhecendo nossa incapacidade, nossas misérias, nossas fraquezas, nossa indignidade. Essa humildade é, antes de tudo, interior e ela faz que nos apoiemos unicamente na misericórdia infinita de Deus e nos méritos infinitos de Cristo. Essa humildade interior termina por se manifestar também exteriormente: o publicano não ousava nem levantar seus olhos. Se nos apresentamos diante de Deus com presunção e arrogância, com grande estima de nós mesmos e para mostrar nossas virtudes, nossas orações serão infalivelmente estéreis. Elas serão também estéreis se, mais do que orações, elas são exigências, como se Deus fosse obrigado a nos dar aquilo que pedimos. Deus resiste aos soberbos. Mas a oração daquele que se humilha penetra nos céus.

A piedade na oração implica também uma grande confiança. Nossa oração deve ser confiante porque ela se dirige a Deus, que é todo-poderoso e que quer o melhor para nós. Nossa oração se dirige à infinita bondade de Deus, que nos governa, que cuida de nós e que quer o melhor para nós. Se Deus nos ajuda – e felizmente – mesmo quando não pedimos, como foi o caso nas Bodas de Caná, podemos ter certeza que Ele nos ouvirá se rezamos bem. Essa confiança na oração é um preceito dado por São Thiago : “se alguém quer pedir algo a Deus, peça com confiança.” Não deixemos de ter essa confiança, caros católicos, em nossas orações.

A última qualidade da oração piedosa é a perseverança. Não basta pedir um instante, uma vez ou algumas vezes para sermos ouvidos, como se pudéssemos determinar o momento em que Deus deve nos conceder seus favores. Deus nos pede a perseverança na oração porque com muita frequência Ele não nos atende imediatamente, a fim de provar e purificar a nossa fé e confiança, a fim de nos fazer rezar mais, a fim de nos fazer apreciar melhor suas graças ou por outra razão digna de sua sabedoria. Vejamos, por exemplo, a perseverança do paralítico na piscina probática: ele esperou 38 anos, ele perseverou durante 38 anos. E por que Deus fez esse paralítico esperar 38 anos ? Para que ele fosse curado pelo Messias e para que, por meio dessa cura, os outros pudessem reconhecer o Verbo de Deus encarnado. Após 38 anos de espera, a cura foi muito mais perfeita não somente para o paralítico mas também para os outros. A espera de 38 anos foi recompensada pela cura da alma dos que presenciaram a cena. E quantos exemplos de perseverança no Evangelho: a cananéia, que insiste para que Nosso Senhor dê as migalhas destinadas aos cachorros, o amigo importuno que pede o pão e tantos outros.

Devemos, ainda, acrescentar um desejo ardente de sermos atendidos, pois é a nossa salvação que está em jogo. Devemos rezar com diligência e querendo ser atendidos e não com indiferença ou tibieza. O Anjo disse ao Profeta Daniel: você foi atendido porque você é um homem de desejos

Eis, então, caros católicos, como devemos rezar. Mas falta algo que aumenta muito a eficácia de nossas orações: confiá-la nas mãos de Maria Santíssima para que ela apresente nossas súplicas ao seu Filho.

Assim, se não estamos endurecidos no pecado, se pedimos coisas úteis para nossa salvação, e as pedimos com atenção, humildade, confiança, perseverança e fervor, seremos sempre e infalivelmente atendidos por Deus, se pedimos algo para nós mesmos. Rezemos, então, e rezemos muito e rezemos bem porque a oração bem feita é o alimento da nossa alma. Ela é a arma de defesa e de ataque contra o demônio, as tentações, o pecado. A oração bem feita é a chave dos tesouros celestes. Ela é o grande meio para nossa santificação e salvação. E se temos dificuldades para fazer uma boa oração, e certamente o temos, façamos como os Apóstolos e peçamos a Nosso Senhor que nos ensine a rezar, porque aquele que reza bem se salva, enquanto aquele que não reza se condena.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

[Sermão] Tentações: razões, fases, modos de vencê-las

Sermão para o Primeiro Domingo da Quaresma
17 de fevereiro de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

 

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…

No Santo Evangelho de hoje, vemos o demônio tentando Nosso Senhor Jesus Cristo. São Tomás diz que Nosso Senhor quis ser tentado por quatro razões.

Primeiramente, para nos auxiliar contra as tentações, isto é, para vencer as nossas tentações pelas suas, assim como venceu a nossa morte pela sua morte.

Em segundo lugar, Ele quis ser tentado para que ninguém pense que está imune das tentações, por mais santo que seja.

Terceiro, para nos dar o exemplo de como vencer as tentações.

Quarto, para que tenhamos confiança em sua misericórdia, pois temos um Salvador semelhante a nós em tudo, salvo no pecado.

É preciso ter claro, porém, que a tentação de Cristo no deserto é bem diferente da nossa. Quando somos tentados, inclinamo-nos e somos, em maior ou menor medida, atraídos ao mal e temos que combater essa inclinação, às vezes com grande dificuldade. Em Cristo, não houve nada disso, não houve qualquer conflito interno nem qualquer inclinação ao mal, por menor que seja. Para Cristo, as tentações que lemos hoje no Evangelho, eram puramente exteriores, pois do contrário haveria o início de uma desordem moral em Cristo, o que não pode ser admitido sem blasfêmia.

Convém, então, conhecermos o processo da tentação, para não confundi-la com o pecado. A tentação não é, em si, um pecado.

Nós vemos hoje, então, o demônio em seu ofício próprio, que é o de tentar, como nos diz São Tomás. Todavia, nem todas as tentações vêm do demônio. São Tiago no diz expressamente que “cada um é tentado por suas próprias concupiscências, que atraem e seduzem.” (Tiago I, 14). E também é evidente que outros homens podem nos tentar, nos incitar ao pecado pelo mau exemplo, por mau conselho, mandando, louvando o pecado, participando, ou então, não nos avisando, não impedindo, não denunciando o pecado quando podem e devem fazê-lo. A tentação pode ocorrer de dois modos distintos. O primeiro modo por persuasão interna, ou seja, pela imaginação, pela provocação de sentimentos desordenados ou de paixões desordenadas, a fim de obscurecer nosso entendimento e arrastar nossa vontade. O segundo modo é pela proposição externa do objeto desordenado que atrai nossas paixões, nosso entendimento ou nossa vontade.

Para evitar a confusão entre a tentação e o pecado, é preciso distinguir três fases na tentação.

A primeira fase da tentação é a sugestão. A sugestão é a representação do pecado na imaginação ou na inteligência. Portanto, o pecado aparece em nossa imaginação ou em nossa inteligência. Essa mera representação ou aparição involuntárias – por piores que sejam e por mais duradouras que sejam – não constituem ainda pecado, se nossa vontade não consente. Evidentemente, devemos rechaçar essa sugestão assim que percebemos a sua maldade. Se a vontade não trabalha para afastar essa sugestão, nos expomos ao subsequente consentimento. Portanto, a negligência em não afastar essa sugestão ou representação é um pecado venial, sobretudo se a tentação é forte. Se eu desejo pensar em algo ruim ou imaginar algo ruim, já temos aí, evidentemente, um pecado, pois se trata de um ato plenamente voluntário. Eis a primeira fase: a sugestão, a imaginação ou o pensamento ruim involuntários.

A segunda fase da tentação é a deleitação não deliberada ou o sentir involuntário. Com frequência, a simples sugestão involuntária de que falamos acima gera certa deleitação ou uma sensação. Também aqui não há pecado, se essa sensação não é querida, se ela não é desejada nem permitida pela vontade. Essa sensação espontânea não é um ato voluntário e não pode, então, ser um pecado. Sentir não é consentir. E o pecado está somente no consentir. Então, se, ao contrário, consentimos nessa deleitação, nessa sensação agradável que nos traz a sugestão do pecado, cometemos aí sim uma ofensa a Deus.

A terceira fase do tentação é o consentimento da vontade. Se depois da sugestão e dessa deleitação ou sensação involuntárias, a vontade rechaça ambas as coisas, não há aí pecado algum. O pecado só existe quando admitimos ou aprovamos a má sugestão ou a deleitação desordenada. O pecado só vem com o consentimento da vontade. É preciso ter bem claras essas três fases e ter em mente que o pecado só vem com o consentimento.

Muitas vezes, é difícil discernir se houve ou não consentimento. Há algumas regras para nos ajudar a saber se houve ou não consentimento. Assim, se se trata de uma pessoa de consciência reta que não costuma cair com frequência em pecado, a presunção de que não houve consentimento ou de que o consentimento foi imperfeito está a seu favor. Se se trata, ao contrário, de pessoa que tem a consciência larga e que costuma ceder com frequência às tentações, a presunção é de que houve consentimento. Se a pessoa lutou durante todo o período da tentação, rechaçando-a repetidas vezes, é provável que não tenha consentido ou ao menos que não tenha consentido plenamente. Da mesma forma, em geral, se a pessoa podia cometer facilmente um pecado externo correspondente à tentação e não o cometeu, há indícios fortes de que não houve pleno consentimento. Em caso de dúvida séria se consentimos ou não, devemos fazer um ato de contrição e nos acusar dessa falta como duvidosa na confissão.

Para vencer as tentações é preciso, igualmente, distinguir três fases.

A primeira fase antecede a tentação. Ela consiste em vigiar e orar. Nosso Senhor mesmo o diz: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca.” (Mt XXVI, 41). É preciso, portanto, ter uma vida de oração sólida, com as orações da manhã e da noite, com o Santo Terço, com jaculatórias. Recorrer a Nossa Senhora e ao Anjo da Guarda. É preciso vigiar, fugindo das ocasiões de pecado, evitando a ociosidade, combatendo o defeito dominante, mortificando os sentidos, sobretudo os olhos. Nosso Senhor nos dá o exemplo: no deserto, ele passou quarenta dias rezando, meditando e mortificando-se, sem ociosidade, sem colocar-se em ocasião de pecado, etc…

A segunda fase do combate à tentação é durante a própria tentação. É preciso resistir à tentação assim que ela surge, isto é, quando ela inda é fraca e fácil de ser vencida. Não agir logo contra a tentação, sobretudo em matéria de fé e pureza, é um pecado venial de negligência e de exposição ao pecado, pois se deixamos a imaginação ou o pensamento permanecerem, passaremos à deleitação involuntária e dessa deleitação temos um grande risco de passar ao consentimento. Nosso Senhor nos dá o exemplo. Ao contrário de Adão e Eva que pararam para pensar no que estava dizendo o demônio e terminaram consentindo, Cristo reage imediatamente, citando a Revelação. É preciso, assim, resistir à tentação seja diretamente, seja indiretamente. Resistir diretamente à tentação é fazer ou pensar o contrário daquilo que é sugerido pela tentação. Se a tentação consiste em falar mal de alguém sem necessidade, devemos procurar falar bem daquela pessoa, de suas qualidades. Se a tentação é de suprimir uma oração ou encurtá-la, devemos prolongá-la. Se a tentação é de irar-se sem causa ou de forma desproporcional, devemos agir com muita medida, etc. Resistir indiretamente consiste em não enfrentar a tentação, mas afastar-se dela, aplicando nossa imaginação e nossa inteligência em algo bom, lícito, que possa absorver nossas faculdades. Em tentações contra a fé e a castidade, devemos aplicar sempre a resistência indireta, pois nesses casos, a luta direta pode aumentar a tentação, dado o perigo e a sinuosidade da questão. Em matéria de fé e castidade, em particular, devemos aplicar as nossas faculdades, sobretudo a memória e a imaginação, a uma atividade que as absorva e devemos fazer isso rápida e energeticamente, mas também com grande serenidade e calma. Por exemplo, podemos considerar todos os Estados do país e suas capitais, como diz um autor espiritual.

A tentação pode persistir, apesar de a rechaçarmos empregando os devidos meios. Se a tentação persiste, não devemos desanimar, não devemos perder a coragem. Será necessário repetir mil vezes o repúdio à tentação com serenidade e paz, evitando cuidadosamente o nervosismo, a perturbação e certo desespero, que seriam já um início de vitória do inimigo. Nosso Senhor dá mais uma vez o exemplo: Ele reage imediatamente à tentação e com vigor, mas com serenidade e calma. Cada ato de repulsa à tentação será um mérito adquirido diante de Deus e um novo fortalecimento para a alma. A tentação contínua, quando é igualmente rechaçada continuamente, aproxima a alma de Deus. Quando as tentações são contínuas, convém manifestá-las ao confessor, pois uma tentação declarada ao confessor é uma tentação semi-vencida já. O confessor poderá também dar conselhos mais precisos para evitar as tentações e combatê-las melhor. Claro, podemos pedir a Deus que nos livre dessas tentações, como fez São Paulo, sabendo, porém, que Deus pode continuar a permiti-las, justamente, para que possamos continuar a progredir humildemente, como ele fez com o mesmo Apóstolo. No Pai Nosso, não pedimos a Deus que nos livre da tentação, pedimos a Deus que não nos deixe cair nas tentações e que nos livre do mal, que é, antes de tudo, o pecado.

A terceira fase do combate às tentações é depois delas. A alma deve agradecer a Deus humildemente, se saiu vitoriosa do combate. Deve arrepender-se imediatamente, se teve a desventura de sucumbir, e procurar a confissão, se se trata de pecado grave. A alma deve aproveitar a lição da queda para os combates futuros.

Devemos nos lembrar, caros católicos, que as tentações sempre existirão. Elas só cessarão no céu. Diz a Sagrada Escritura: “Filho, vindo para servir ao Senhor, (…) prepara a tua alma para a tentação.” Em geral, quando tomamos a decisão de servir bem a Deus, somos mais tentados. E isso é bem normal. Quando estamos distantes de Deus, caminhamos sozinhos para o mal, não precisamos ser induzidos por alguém nem provocados ao erro. Quando a pessoa está distante de Deus já são tantos os perigos e as ocasiões de queda a que ela se expõe que o demônio nem precisa tentá-la, praticamente.

Eis, então, o combate contra a tentação, tentação que não é, em si, um pecado.

Aproveito também para tratar dos chamados pecados internos, para os quais muitas pessoas dão pouca importância ou automaticamente consideram como pecado venial, desde que não haja nenhum ato externo. Ora, o pecado é essencialmente algo interno, que está na vontade. Portanto, para que haja pecado não é necessário passar ao ato externo. Basta considerarmos o nono e o décimo mandamentos: não cobiçar a mulher do próximo e não cobiçar as coisas alheias são pecados puramente internos. Assim, um pecado puramente interno tem a mesma gravidade essencial que o ato externo. Claro, o ato externo aumenta a malícia do ato interno em virtude da maior intensidade da vontade requerida para passar ao ato exterior, pela maior duração do ato interno, que se prolonga durante toda a execução exterior e pela eventual multiplicação dos atos interiores quando da execução exterior. Além disso, os atos externos podem ter outras consequências: o escândalo, a destruição dos bens do próximo e a consequente obrigação de restituir, por exemplo. Mas, essencialmente, o pecado interno tem a mesma gravidade que o ato externo, pois o ato externo é simples prolongamento do pecado interno. Por isso, Nosso Senhor diz: “todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração.” (Mt V, 28). Portanto, se o ato externo é pecado mortal, o pecado puramente interno também será, se há a plena advertência e o pleno consentimento necessários para que haja pecado grave.

Os pecados internos podem ser de três tipos.

O primeiro tipo de pecado interno chama-se deleitação morosa, que é regozijar-se na representação do pecado, como se ele estivesse sendo realizado, mas sem a intenção de realizá-lo exteriormente. Se alguém se regozija, com plena advertência e consentimento, no pensamento de assassinar outra pessoa, por exemplo, comete homicídio em seu coração, um pecado gravíssimo, por mais que não tenha a intenção de passar ao ato externo.

O segundo tipo de pecado interno é o mau desejo, que ocorre quando a pessoa tem a intenção de executar o pecado quando for possível. Ainda que não consiga executá-lo, o pecado interno já está cometido com a mesma gravidade essencial do pecado externo. Com o mesmo exemplo, alguém que tem a intenção de matar outra pessoa, mas não consegue fazê-lo por que a polícia passou na hora, cometeu homicídio em seu coração.

O terceiro e último tipo de pecado interno é a alegria pecaminosa, isto é, a alegria ou deleitação voluntárias com uma ação pecaminosa passada feita pela própria pessoa ou por outra. Aquele que, depois de ter matado alguém injustamente, se alegra de tê-lo matado, comete novamente homicídio em seu coração com a mesma gravidade essencial do homicídio propriamente dito.

Portanto, os pecados internos não são sem importância, eles não são automaticamente veniais. Os pecados internos têm a mesma gravidade essencial do ato externo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, caros católicos: Adoremos ao Senhor e sirvamos a Ele somente, combatendo as tentações e evitando todo pecado.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.